ARTIGO: “Ainda estou aqui”. Conheço esse truque.

Por Percival Puggina (*)

O prêmio atribuído ao filme de Walter Salles Jr. na recente cerimônia do Oscar não é dos que me encheriam de orgulho pátrio. Um Nobel – unzinho só – em Literatura ou Ciências me faria bem mais feliz. Nosso longo jejum de 124 anos junto à Real Academia Sueca diz muito sobre um país onde os melhores talentos naturais vão embora, a começar pelos craques da bola, que, ainda imberbes, seguem direto do campinho da vila para a Europa. 

O filme “Ainda estou aqui” reproduz o velho truque usado pelo mesmo diretor, com muito sucesso político, na produção de “Diários de motocicleta (2004)”. Naquele início de milênio, curioso por conhecer um país comunista, eu fizera minhas primeiras andanças por Cuba em voos baratos da Cubana de Aviación. Lera muito sobre a revolução e seus dois principais personagens – Fidel e Che – e publicara, no mesmo ano, a primeira edição de “Cuba, a tragédia da utopia”. 

O truque do laureado cineasta consistiu então, como agora, em contar de modo talentoso a parte politicamente conveniente de uma história real. É um recorte, um short, um mero tik tok extraído do que realmente aconteceu, porque contar a história inteira arruinaria o efeito político desejado. 

“Diários de motocicleta” conta a viagem que os jovens mochileiros Ernesto Guevara de la Serna e seu amigo Alberto Granado fizeram em 1952, saindo de Buenos Aires rumo a Caracas. No percurso de moto, entre aventuras e vicissitudes, os dramas sociais vistos ao longo do percurso andino vão alterando o espírito de Ernesto, levando-o a gastar o tempo livre na leitura de obras marxistas e na redação do diário de viagem.

Um de seus trechos mais expressivos se reporta ao curto período em que o Ernesto e Alberto passaram à margem do Amazonas num leprosário cuidado por religiosas peruanas. Do que ali aconteceu, Salles ressalta dois episódios: a) os viajantes se recusaram a utilizar as desnecessárias luvas que as freiras exigiam para contato com os pacientes; e b) no domingo, por ausência à missa, foram punidos com supressão do almoço porque a regra das irmãs era a de que “quem não alimenta o espírito não merece o alimento do corpo”.

Os dois relatos, como desejava o cineasta, induzem o telespectador a concluir que Ernesto foi mais cristão do que as freiras, mais generoso nas suas relações e mais sensível do que elas aos problemas dos doentes… Ou seja: o argentino era um anjo de bondade e as irmãs um bando de mulheres perversas. 

No entanto, à semelhança do que acontece mundo afora em tantos leprosários mantidos há séculos por ordens religiosas, as irmãs de San Pablo passaram suas vidas num recôndito da selva amazônica cuidando, anonimamente, dos portadores da terrível enfermidade. Não mereciam que Walter Salles Jr., em seu intuito de construir o mito do Che, exaltando o comunista e zombando do cristianismo, as apresentasse ao público como insensíveis megeras.

O filme de 2004 termina abruptamente, quando os dois amigos se separam. Uma mensagem na tela informa que Ernesto Guevara de la Serna se incorporaria à revolução cubana e se tornaria um de seus comandantes. Mas que diabo! É ali que sai o adolescente mochileiro e entra o vulto histórico tomado pelo ódio mortal aos adversários, transformado em fria “máquina de matar”. E esse é apenas um dos maus resultados da ideologia que as duas realizações querem mostrar virtuosa, pois “Ainda estou aqui” faz a mesmíssima coisa. Os dois filmes com a história inteira de seus personagens Walter Salles Jr. não fez e jamais fará.

Achou ruim? Pior, muito pior, é saber que nas salas de aula do Brasil a mesma extrema esquerda aplica idêntico truque para enfeitar os recortes, os tik toks, proclamados como inteiras verdades históricas sobre os mais variados assuntos.

*Este artigo usa trechos de dois artigos que escrevi para o Correio do Povo em maio e julho de 2004. 

(*) Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Fonte: Site puggina.org, gentilmente disponibilizou este artigo para o DF In Foco News

Foto: Reprodução

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