Barbosa: Anvisa não pode aceitar que Congresso invada suas atribuições

 

Diretor-presidente do órgão afirma que uma das maneiras de evitar essa interferência é que diretores não tenham apadrinhamento político

Prestes a terminar o mandato como diretor-presidente da Anvisa, o qual ocupou por três anos, o médico sanitarista Jarbas Barbosa critica as tentativas do Congresso e Executivo de questionar normas da agência na área da saúde e afirma que uma das maneiras de evitar essa interferência é que diretores não tenham apadrinhamento político.

“Quando teve o debate sobre a fosfoetanolamina, disse que havia risco sanitário. Por isso acho fundamental que diretor de agência não tenha apadrinhamento político. Um diretor-presidente, se tivesse, pensaria dez vezes antes de dizer que discordava e apontar problemas nas decisões do Congresso e do Executivo.”

Ele se refere às tentativas de liberação de produtos vetados pela agência -como a chamada pílula do câncer e inibidores de apetite. A primeira foi suspensa pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e a segunda ainda aguarda análise. Agora, a agência também tenta reverter o avanço de projeto que reduz poder dela na regulação dos agrotóxicos.

De saída para ocupar o cargo de diretor-assistente na Opas (Organização Pan-americana de Saúde), braço da Organização Mundial de Saúde em Washington, Barbosa diz que pretende discutir no novo cargo medidas estratégicas de apoio aos países para garantir acesso a medicamentos de alto custo e tentar reverter a queda na vacinação, problema que atinge o Brasil.

Durante sua gestão, a Anvisa teve sua autoridade frequentemente questionada, com decisões do Congresso e do Executivo se sobrepondo às da agência, como no caso da chamada pílula do câncer e dos emagrecedores. Como vê esse movimento?

Tentei manter e defender a autonomia da agência. Se no passado o executivo influenciava a agência indevidamente, não permiti que isso ocorresse.

Quando teve o debate sobre a fosfoetanolamina, tomei posição e disse que havia risco sanitário. Por isso acho fundamental que diretor de agência não tenha apadrinhamento político. Um diretor-presidente, se o tivesse, pensaria dez vezes antes de dizer que discordava e de apontar problemas nas decisões do Congresso e do Executivo.

Ainda assim, a Anvisa tem perdido a batalha no caso dos emagrecedores. Também enfrenta investidas recentes em relação a agrotóxicos.

A batalha continua. A Anvisa adotou posição pública nesses casos. No caso de anorexígenos, ingressamos como “amicus curie” no Supremo Tribunal Federal. E temos convicção que o STF vai barrar, porque é inconstitucional. A legislação brasileira é clara ao dizer de quem é a responsabilidade de dar registro a medicamentos.

No caso da fosfoetanolamina, foi um movimento populista [do Congresso e Executivo] de fazer meio que na pressa a liberação de algo que não tinha nenhuma comprovação, como não tem até hoje.

Todas as vezes que houver ameaça, seja do Congresso ou do Executivo, a agência tem que responder com autonomia e independência, porque isso não vai deixar de ocorrer. Vemos que em outros países também há esse debate.

Considera que há uma tentativa de enfraquecimento da agência?

Diria que não há uma tentativa de enfraquecer, mas de extrapolar seu papel. Qual a saída? É a agência ter tecnicamente muita consistência para mostrar que suas decisões protegem a saúde da população. E ter liderança política forte. Respeitamos o Congresso, que é fundamental em uma democracia. Mas não podemos aceitar que o Congresso ou Executivo invada nossa atribuição.

O sr. diz que não pode haver apadrinhamento político. Mas temos visto o contrário, em que crescem críticas pela interferência política na nomeação de diretores.

Penso que o papel das agencias regulatórias nunca foram bem compreendidos dentro do modelo do Estado brasileiro. Muitos senadores agem da maneira mais correta possível, questionam os candidatos nas sabatinas e cobram currículo adequado.

Mas infelizmente isso não é o modo de agir dominante. Muitas vezes se tem colocado pessoas em agências, falando em amplo senso, sem experiência de gestão. Isso torna a agência mais vulnerável.

Cobrança política tem que haver, o Congresso tem que cobrar eficiência e o Senado tem que cobrar que diretor indicado tenha qualificação necessária. Por isso defendo a aprovação do chamado PL das agências [projeto de lei que muda as regras para as agências], porque dará autonomia e reduzirá a possibilidade de indicação por apadrinhamento político.

A Anvisa entrou em uma disputa nos últimos meses com o Ministério da Saúde, que pretendia importar medicamentos de alto custo e sem aval da agência. Como ficou isso?

Como o Ministério da Saúde coordena o SUS, todas as solicitações dele têm que ser tratadas com prioridade, mas isso não pode se dar à revelia da legislação.

Creio que todo gestor público tem que buscar reduzir custo, mas o que o ministério tentava fazer ao dispensar as apresentações de DDR [declaração de detentor de registro] das empresas era abrir as portas para poder ter no Brasil medicamento falsificado, que não conseguíamos assegurar a qualidade.

O registro não é uma coisa burocrática, é um dossiê com milhares de páginas sobre qualidade, segurança e eficácia em que a empresa se responsabiliza por qualquer problema com o medicamento.

Se o ministério começar a solapar as bases desse sistema, nenhuma indústria teria interesse em registrar produtos no Brasil, e daqui a pouco seríamos como países da Ásia, com percentuais altíssimos de medicamentos falsificados. Por isso mantemos nossa posição e temos cumprido o que está na regulamentação, exigindo que apresentem os documentos obrigatórios.

O sr. já chegou a dizer que a liberação do cultivo de Cannabis para fins medicinais era uma de suas prioridades. Mas não houve nem sequer uma proposta de iniciativa aprovada. O que deu errado?

Isso ficou pendente, mas está perto de se resolver. O diretor-presidente pode evocar para si qualquer processo, mas não fiz uso desse instrumento em nenhum momento da gestão, pela harmonia entre diretores.

Quando percebi que o processo estava parado, fiz cobrança pública para que andasse. E agora está perto de concluir a iniciativa. É um tema complexo para ser regulamentado. Mandamos técnicos da Anvisa fazer visitas técnicas ao Canadá e Reino Unido e tivemos intercâmbio de informações com EUA e Israel. A discussão está avançada. Também tivemos alterações no regulamentação e tivemos o primeiro medicamento à base de Cannabis registrado. Também flexibilizamos a importação no canabidiol. Ficou faltando só essa regulamentação. Acredito que o Renato Porto, diretor responsável, tem condições de levá-la em no máximo 30 dias.

A Anvisa sofreu uma pressão para adiar esse debate sobre a Cannabis?

Em mim não houve nenhuma. Não sei se para outro diretor houve. Até porque isso está na lei de 2006 [lei 11.343]. Não vamos debater plantação individual da pessoa. O que a lei diz é que para pesquisa científica e medicamentos, tem que regulamentar.

A Anvisa também discute mudanças nos rótulos dos alimentos, mas a proposta tem sido alvo de lobby de todos os lados. Como garantir que a decisão favoreça ao consumidor?

O modelo que colocamos para uma tomada pública de subsídios [espécie de consulta pública] nitidamente favorece o consumidor porque dá a possibilidade imediata de saber o conteúdo e fazer a escolha do alimento.

A indústria tem tentado adiar esse processo e já anunciou que vai apresentar nova proposta.

É importante que todo mundo apresente suas propostas, mas a revisão que foi feita nos mostra que a proposta da indústria, que é o semáforo, é absolutamente inadequada. Vários estudos demonstram isso. O semáforo é facilmente confundido com as cores das embalagens dos alimentos. Também é de difícil interpretação e pode levar a confusão. Se tem um alimento alto em sódio, baixo em açúcar e em gordura, ele teria um semáforo com um sinal vermelho e dois verdes. Que interpretação se faz disso?

A maneira que colocamos é muito mais direta, com fundo preto para diferenciar da embalagem e mostrar que é “alto em sódio”. Esse modelo faz a indústria buscar tecnologias para reduzir a quantidade de sódio, açúcar e gorduras. A indústria falou que pode demitir pessoas [com a mudança]. Não recebemos nenhum estudo consistente que mostre esse impacto na economia. E em países onde isso foi implementado não houve esse impacto.

O sr. deve agora assumir um cargo na Opas [braço da OMS nas Américas]. Deve levar demandas ou temas do Brasil para serem tratados internacionalmente?

Vou ficar responsável por todas as áreas técnicas, inclusive a que trabalha com sistemas de saúde, acesso e regulação. A parte técnica de cooperação com os países vai estar sob minha responsabilidade.

Há temas que estimulamos, como medidas estratégicas para garantir acesso a medicamentos de alto custo. Isso é uma preocupação do mundo inteiro. A Opas tem um papel importante de possibilitar o intercâmbio entre países e fixar medidas. A Opas também pode fazer compra em nome de vários países, o que permite aquisição maior.

Hoje temos um paradoxo, com medicamentos inovadores que aumentam as alternativas terapêuticas disponíveis, mas com custos difíceis de serem absorvidos pelos sistemas de saúde de países em desenvolvimento.

O Brasil enfrenta queda nos índices de imunização e avanço de doenças eliminadas, como o sarampo. Pretende abordar esse tema?

Vamos ter que tratar disso. Isso está exigindo um esforço grande de debate, esclarecimento e novas estratégias, como abrir os postos de saúde de noite e nos fins de semana. Hoje as mulheres trabalham e não tem condições de levar os filhos. Os sistemas de saúde das Américas precisam se adaptar à nova realidade e trabalhar com estratégias específicas. Quem são os grupos que estão se vacinando e quem não está? Muitas vezes temos nos dois extremos pessoas de alto nível de educação e renda, ou profissionais com modismos sem evidências científicas. E na outra ponta pessoas pobres, com barreiras sociais. Esse é um desafio.

O êxito das vacinas reduziu tanto essas doenças que às vezes há percepção que elas sumiram e não vão voltar, mas elas estão voltando. A única que foi erradicada e não volta nunca mais é a varíola, mas as outras podem voltar.

A Opas pode e deve avaliar esse cenário. Ela liderou os esforços nas Américas para erradicar o sarampo. Todo ano há assembleia de ministros de saúde e esses pontos é um dos que vai ser tratado. Prestaremos assistência aos países para que êxitos sejam alcançados.

PERFIL

Jarbas Barbosa da Silva JúniorÉ diretor-presidente da Anvisa, cargo que assumiu em 2015 e deixa nesta semana. Antes, no Ministério da Saúde, foi secretário de Ciência e Tecnologia, de Vigilância em Saúde e titular da secretaria-executiva. É médico graduado pela Universidade Federal de Pernambuco (1981).

Com informações da Folhapress.

 

Fonte: Notícias Ao Minuto

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

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