Como cursinho comunitário transformou a vida de 3 jovens brasilienses

 

Eles são negros, da periferia e aprenderam na educação popular como quebrar barreiras no acesso ao ensino superior

“Sou fruto do pré-vestibular comunitário”. Essas foram algumas das últimas palavras de Marielle Franco, assassinada a tiros, no Rio de Janeiro, em 14 de março. O depoimento (veja abaixo) foi dado durante a roda de conversa Mulheres Negras Movendo Estruturas, da qual a vereadora participou horas antes de ser executada.

Ela se referia à iniciativa Redes da Maré, incentivadora da educação na favela onde nasceu. Assim como Marielle, milhares de jovens brasileiros descobriram em cadeiras de cursinhos populares que o acesso ao ensino superior é, sim, um direito de todos.

Em Brasília, uma das iniciativas existentes para oferecer perspectivas de futuro à juventude é a Rede Emancipa. Trata-se de um movimento social fundado em 2007 à base de trabalho voluntário de educadores. O principal foco de atuação são cursinhos populares pré-universitários.

Além dos conteúdos básicos – matemática e português – o grupo oferece “educação transformadora”, um convite aos alunos para pensar a realidade de maneira crítica e emancipadora.

A Rede está em 19 cidades de sete estados, em todas as cinco regiões do país. São 32 cursinhos, cerca de 5 mil estudantes ao longo do ano e mais de 600 professores. Já beneficiou em média 20 mil alunos.

No DF, trabalha desde 2016 e transformou a vida de pelo menos 430 pessoas. Atualmente, há um financiamento coletivo aberto para custear a alimentação dos estudantes.

“Temos muita evasão escolar por conta da fome. Queremos dar estrutura para que eles [os alunos] não desistam”, explica uma das coordenadoras do projeto no DF, Jamile Guerra. Quem desejar, pode fazer uma colaboração fixa todo mês, agendada no cartão.

Outra campanha da entidade, também no formato colaborativo, quer reunir recursos para construir a Universidade Emancipa, um centro de formação de educadores. São necessários R$ 50 mil para tirar o projeto do papel.

 

Multiplicadores
É possível ajudar também sendo voluntário. Marivaldo Pereira, 38 anos, nascido em Brasília, é uma das pessoas que se dedica ao Emancipa sem pedir nada em troca. Assim como Marielle Franco, ele é fruto de cursinho comunitário e hoje trabalha para multiplicar oportunidades. Quando perguntava sobre vestibular na escola pública onde estudava, professores respondiam: “É melhor comprar uma calça jeans que investir nisso”.

“Acabei o ensino médio e estava desesperado, sem nenhuma perspectiva”, recorda. Marivaldo queria ser advogado e buscava uma ponte entre o sonho e a realidade.

Encontrou o caminho no pré-vestibular gratuito da Poli, ligada à Universidade de São Paulo, na cidade onde cresceu. “Minha mãe criou os quatro filhos praticamente sozinha, como doméstica. Trabalho desde os 9 anos. Já fui pedreiro, office boy e feirante”, lembra Marivaldo.

Rede Emancipa / Divulgação

Rede Emancipa / DivulgaçãoMarivaldo em evento da Rede Emancipa

Marivaldo estudou durante dois anos até passar no vestibular para direito da USP, onde também fez mestrado. “Trabalhava o dia todo, não era fácil. No cursinho, entendi que o processo de exclusão social não é natural”, diz.

Em 2005, ele voltou à terra natal. Hoje, é auditor federal de finanças e controle da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda. Anteriormente, ocupou o cargo de secretário Nacional da Reforma do Judiciário.

Aos sábados, dedica-se a ensinar matemática na Rede Emancipa, em Ceilândia. Quer ajudar outras pessoas a saírem do círculo de exclusão. “Quando ocupamos espaços onde decisões são tomadas, temos de puxar os outros que ficaram para trás”, justifica.

O advogado também planeja lançar candidatura ao Senado nas próximas eleições. “Faço parte de um grupo que formula políticas públicas. Avaliando a situação do país, construímos um projeto político focado na redução da desigualdade de renda, na promoção da segurança e da saúde para a população mais pobre”, afirma.

“O acesso à educação faz toda a diferença na formação social e no acesso à renda da população mais pobre” Marivaldo Pereira

Educação Popular
Quando está à frente do quadro, em sala de aula, Marivaldo se reconhece em rostos como o de Marconi Cristino, morador de Ceilândia. A trajetória de Marconi assemelha-se à de milhares de outros meninos e meninas de periferia – em especial os negros, que ainda representam somente 12,8% dos estudantes na rede privada de ensino superior brasileira, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Coletivo Duca / Divulgação

Coletivo Duca / DivulgaçãoMarconi Cristino entrou na UnB aos 37 anos: sonha em ser arte-educador

Aos 37 anos, conquistou uma vaga na Universidade de Brasília (UnB), para artes cênicas, após estudar no Emancipa-DF e no projeto Jovem de Expressão. Marconi frequentou colégios públicos a vida inteira. É filho de uma mulher nordestina, diarista, que criou os quatro filhos sem apoio do parceiro.

Marconi concluiu o ensino fundamental com 18 anos e o médio aos 25. “Nessa época eu pensava: faculdade não é para mim. Não tinha nem o dinheiro da passagem, como iria custear? Hoje vejo que o maior obstáculo era não acreditar no meu potencial”, resume.

 

Ele fez parte de grupos de teatro em projetos sociais pelos quais passou. Nessas oficinas, apaixonou-se por arte. As iniciativas, porém, sempre eram interrompidas por falta de verba. A oportunidade de escolher uma profissão só apareceu em 2016, quando ele conheceu o Emancipa.

“Cheguei acanhado por ser mais velho, mas fui muito acolhido. Nunca tinha feito um vestibular na vida. A dedicação dos professores me fez acreditar, me empoderou”, afirma Marconi.

As monitorias e a disposição dos educadores para tirar dúvidas durante toda a semana fizeram a diferença. A inclusão dos alunos nas principais decisões sobre o cursinho também. “O estudante participa de tudo, define os rumos da própria educação e aprende a valorizar o coletivo”, relata. Marconi ainda atua no Emancipa, como fotógrafo voluntário. Também quer retribuir de alguma maneira toda ajuda recebida.

Quando entrei na faculdade, uma nova vida começou. Sonho em ser professor de artes cênicas e viver disso

Marconi Cristino

Raquel Vieira, 19 anos, também teve a formação escolar 100% feita na escola pública. É filha de uma técnica de enfermagem e de um cobrador de transporte público. Atualmente, estuda gestão pública na UnB. É outra cria do Emancipa. Atua na coordenação do cursinho como voluntária. Ela intermedeia a comunicação entre educadores e estudantes, além de outras atividades.

 

Arquivo Pessoal

Arquivo Pessoal
Raquel Vieira: “Era como se a UnB não fosse para mim”

Esse projeto me mostrou a importância da educação. As escolas do governo, em geral, têm déficit de didática e de recursos. No Emancipa, nós fazemos a nossa educação

Raquel Vieira

Estudar custa caro: é preciso bancar alimentação, transporte e comprar material, entre outros gastos. Além disso, há a questão social. “Nem se falava em universidade federal na escola pública, até pouco tempo. Professores nos direcionavam a conseguir uma bolsa em alguma faculdade particular. A UnB não era para a gente. Não davam nem informação sobre ela, como se não fosse uma opção. Essa é a maior barreira”, avalia Raquel.

Para ela, o Emancipa oferece muito além de apoio para o vestibular. É um local onde se ensina a reconhecer e a quebrar preconceitos de raça e de gênero. “O Emancipa me fez ter voz, autoestima e compreender-me como cidadã. Agora, quero apoiar outras pessoas para que  também falem por si mesmas”, afirma. Raquel também pretende estudar direito para advogar na comunidade onde vive. “É a minha missão de vida”, conclui.

 

Fonte: Metrópoles

Foto: Marconi Cristino / Coletivo Duca

 

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