Disputa judicial por “trem da alegria” no Senado se arrasta há 33 anos
Ação pede que servidores sem concurso voltem a regime CLT. Rollemberg, Roseana Sarney e Agaciel Maia estão entre favorecidos por medidas
Depois de trinta e três anos e duas sentenças, uma disputa judicial envolvendo o maior “trem da alegria” da história do Senado Federal se arrasta no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). O processo, de autoria dos advogados Pedro Calmon e Jonas Candeia, foi apresentado em 1985 e contesta a efetivação como servidores, sem a realização de concurso público, de mais de 1,5 mil funcionários contratados pela Casa, naquele ano.
Por duas vezes, juízes de primeira instância acataram o pedido e determinaram a anulação parcial do ato. Os servidores entraram com recurso e, desde 2014, a ação está parada e o imbróglio se alonga. Levantamento da reportagem aponta que, caso a sentença fosse executada hoje, mais de 650 do total de servidores nomeados pelos atos seriam atingidos. Desses, cerca de 150 ainda estão ativos e o restante já se aposentou. Os números refletem os beneficiados pela medida que ingressaram no Senado entre outubro de 1983 e dezembro de 1984, segundo o Portal da Transparência da Casa.
Por enquanto, o cenário permanece o mesmo, mas deixa um rastro de insegurança jurídica entre os envolvidos na questão. Apesar de ser a maior, a medida não foi a única do tipo a ser realizada no Senado. Entre os nomes beneficiados pelos “trens da alegria”, estão figuras conhecidas, como o do governador Rodrigo Rollemberg. Aparecem ainda na lista a ex-governadora do Maranhão Roseana Sarney e o líder do governo da Câmara Legislativa, deputado distrital Agaciel Maia (PR). No caso mais recente, estagiários se tornaram servidores.
“Isso é uma loucura. O prejuízo que está dando aos cofres públicos do Brasil é muito grande”, afirma o advogado Pedro Calmon. Hoje com 79 anos, ele tinha 45 quando ajuizou a ação popular contra o “trem da alegria” junto de Jonas Candeia dos Santos, em janeiro de 1985.
No processo, a dupla pede a anulação dos atos 87 e 88 de dezembro de 1984, assinados pelo então presidente do Congresso Nacional, senador Moacyr Dalla. O documento previa a efetivação de 1.556 funcionários contratados pelo Senado Federal até 1984 e que atuavam na gráfica da Casa. Entre os beneficiados pela medida, está o próprio filho do parlamentar, Ricardo de Augusto de Rezende Dalla, além de outros parentes de políticos e nomes como o do hoje deputado distrital do DF Agaciel Maia (PR). À época, o caso se tornou um escândalo e ficou conhecido como “Trem Dalla”.
De acordo com os atos, todos os citados no documento — contratados no regime da CLT e sem concurso público — seriam enquadrados como servidores. Assim, teriam direito à estabilidade no trabalho e à aposentadoria integral — sem submissão ao teto do INSS –, por exemplo. À ocasião, a lei já previa que o concurso deveria ser a principal forma de ingresso no serviço público, mas abria espaço para exceções.
“Os cargos públicos serão acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei.
§ 1º A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei”, diz o artigo 97 da Emenda Constitucional nº 1 de 1969.
No mês seguinte à publicação dos atos, Pedro Calmon e Jonas Candeia questionaram a medida junto à Justiça Federal. Para eles, a Mesa Diretora do Senado não tinha competência para efetivar os funcionários. A partir daí, teve início o imbróglio judicial que já dura três décadas.
Confusão na Justiça
Na década seguinte, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu para ingressar no processo e defendeu a anulação dos atos. Em sua argumentação, o órgão afirmava ser necessária a realização de concurso público para a investidura em cargos do Poder Legislativo e apontou que os postos “irregularmente providos” não foram criados por lei.
A primeira decisão sobre o caso veio em 2002, quando o juiz da 3ª Vara Federal de Brasília anulou a efetivação de parte dos servidores beneficiados pelo “Trem Dalla”. No mesmo ano, no entanto, a sentença perdeu os efeitos. O advogado Reginaldo Castro, representando os herdeiros de dois servidores já falecidos à época, ajuizou um mandado de segurança pedindo a invalidação do processo sob a alegação de que os clientes não haviam sido citados no curso da ação. Portanto, não teriam tido a oportunidade de apresentar defesa.
O pedido foi analisado pela 1ª Seção do TRF-1 em 2003. O relator do caso, desembargador Tourinho Neto, foi contra a anulação do processo. Para ele, não era “aceitável a alegação dos impetrantes de que só vieram tomar conhecimento da propositura da ação popular amplamente divulgada pela imprensa 17 anos depois, e, assim, mesmo depois de prolatada a sentença e de terem perdido prazo para recurso”.
O entendimento, no entanto, foi vencido pela maioria dos integrantes do colegiado. Para três dos cinco desembargadores da seção à época, a sentença só poderia ter efeito caso todos os citados tivessem sido intimados a apresentar defesa. Dessa forma, o processo inteiro foi cancelado e teve de reiniciar do zero.
Uma década depois
Só 10 anos depois, em 2012, veio uma segunda sentença da Justiça sobre o caso. O então responsável pelo processo, juiz federal Bruno César Bandeira Apolinário, também atendeu ao pedido inicial em parte. De acordo com a decisão do magistrado, deveriam retornar ao regime da CLT apenas os servidores admitidos após outubro de 1983. Isso porque a Constituição Federal de 1988 garantiu a possibilidade de efetivação dos trabalhadores, desde que estivessem no cargo há, no mínimo, cinco anos anos antes da publicação da lei máxima.
Atos 87 e 88 de 1984, Senado Federal by Metropoles on Scribd
Segundo o juiz, os atos “tiveram por finalidade beneficiar filhos, afilhados e esposas de políticos influentes, em atentado à moralidade pública e em detrimento dos cofres do país”. Ainda de acordo com o magistrado, os servidores enquadrados nos termos da sentença que já estivessem aposentados deveriam ter o benefício cassado e ficar submetidos ao regime do INSS, com teto bem menor.
Em 2013, os servidores afetados recorreram da decisão à segunda instância. Na apelação, eles pediram que os efeitos da determinação fossem suspensos até a análise do caso no TRF-1. O requerimento foi acatado e, desde 2014, a ação aguarda julgamento. O processo já subiu para a elaboração de relatório e voto pelo menos 11 vezes, mas ainda não foi liberado para apreciação.
O relator do caso seria o desembargador Francisco Betti. Desde 2011, porém, o magistrado está afastado do cargo após acusações de venda de sentenças. Em seu lugar, atua o juiz federal César Jatahy. O processo tramita sob segredo de justiça.
“Estranho”
Para o autor da ação, o advogado Pedro Calmon — defensor de políticos e que ganhou notoriedade nacional ao representar a jornalista Mônica Veloso em disputa por pensão alimentícia com o senador Renan Calheiros (MDB-AL) –, há algo “estranho” no processo que trata do “trem da alegria”.
“Está no gabinete do desembargador federal há uns quatro anos apenas para fazer o relatório e o voto. Já fui pedir, tenho de ir de novo. Há mais de dois anos, estou em cima do gabinete do desembargador para julgar isso e ele não julga”, diz
Enquanto a situação não tem um desfecho final, servidores ficam em um limbo jurídico, tendo em vista que, a qualquer momento, podem ter o salário ou a aposentadoria cassados. O Metrópoles acionou o Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e Tribunal de Contas da União (Sindilegis), que confirmou não ter recebido, até o momento, nenhuma reclamação de filiados quanto a dificuldades causadas pelo processo em trâmite na Justiça Federal.
Segundo o Senado Federal, “a referida sentença não pode ainda ser executada, pois seus efeitos estão suspensos até a decisão final no processo, de acordo com despacho do TRF da 1ª Região”.
Solicitado a comentar o processo, o Sindilegis afirmou que só se pronunciará quando houver nova determinação sobre o caso. A reportagem também questionou a entidade acerca dos argumentos usados na defesa para manter os servidores no regime estatutário, mas não teve resposta do sindicato.
Nas últimas semanas, o Metrópoles tentou falar com pelo menos 20 servidores ainda ativos no Senado e que foram efetivados no “trem da alegria” de 1984. No entanto, devido ao recesso parlamentar, a grande maioria deles estava fora dos postos de trabalho. Também não tivemos resposta do advogado Reginaldo Castro, que defendeu os funcionários e conseguiu a anulação do processo.
Por fim, a reportagem entrou em contato com o TRF-1 para que o órgão comentasse a respeito do tempo de tramitação do processo. Até a última atualização desta reportagem, no entanto, a Corte não havia se manifestado.
Personagens notórios
Na lista dos beneficiados pelos atos 87 e 88 de 1984 do Senado Federal, estão nomes ligados a políticos de décadas anteriores, como o de Flávia Marcílio, filha do ex-deputado federal Flávio Marcílio, e de Ricardo Dalla, filho do ex-senador Moacyr Dalla. O nome de Ruth Maria Frota Mendonça, esposa do atual embaixador do Brasil no Vaticano, também aparece no rol do “trem da alegria”, assim como o do deputado distrital Agaciel Maia (PR).
Ex-diretor-geral do Senado, o atual parlamentar foi alvo de um escândalo em 2009, quando foi revelada a existência de atos secretos na Casa. As 663 medidas teriam beneficiado servidores e políticos, e não foram publicadas no Diário Oficial da União, com o objetivo de evitar divulgação. Pelo caso, Agaciel foi condenado por improbidade administrativa em 2014, em primeira instância.
Na sua defesa, o parlamentar afirmou que a não divulgação no Diário Oficial ocorreu por medida administrativa do Senado e em virtude de ter sido executada por razões de economia e modernização da comunicação. Segundo os advogados de Agaciel Maia, não foi encontrada qualquer ilegalidade nos atos.
Atualmente, o deputado distrital é aposentado pelo Senado Federal e, no mês passado, recebeu R$ 23,1 mil da Casa, além de R$ 16,8 mil como antecipação do 13º. Apesar de ter sido efetivado como servidor no “Trem Dalla”, Agaciel não é um dos afetados pela sentença de primeira instância, tendo em vista que foi contratado em 1977 e a decisão só atinge os celetistas que ingressaram no Senado após outubro de 1983.
Ao Metrópoles, o congressista confirmou a informação. De acordo com o parlamentar, à época da efetivação, “já era servidor do Senado há mais de 7 anos. E a inclusão dos funcionários antigos foi um equívoco da ação”.
Rollemberg e Roseana
Além do “Trem Dalla”, a reportagem localizou pelo menos outros três atos em que funcionários do Senado foram efetivados como servidores sem a realização de concurso público, entre as décadas de 1980 e 1990. As listas também trazem nomes notórios, como o do governador do DF, Rodrigo Rollemberg, e o de Roseana Sarney, ex-governadora do Maranhão e filha de José Sarney.
O primeiro foi beneficiado pelo “trem da alegria” de 1982, época em que a Casa era presidida pelo ex-senador Jarbas Passarinho. Junto de Rollemberg, outras 512 pessoas foram favorecidas pelo ato. Atualmente, por conta da chefia do Executivo, o titular do Buriti está afastado da função no Senado. Em 2008, enquanto deputado federal, o governador chegou a criticar medidas do tipo.
À época da discussão das PECs nº 54/99 e nº 02/03, que garantiam estabilidade a celetistas contratados entre 1983 e 1988, Rollemberg afirmou: “O acesso ao serviço público por meio de concurso foi uma conquista da sociedade garantida pela Constituição de 1988. Nós não podemos admitir, agora, a efetivação de servidores temporários, já sabedores de que seus contratos com o Estado tinham duração determinada. Tampouco podemos admitir que pessoas concursadas para um determinado cargo e local sejam efetivadas em outro, com exigências completamente diferentes, como quer a proposta”, afirmou.
A ex-chefe do Executivo maranhense Roseana Sarney foi outra beneficiada pelos “trens da alegria”. Em 1974, após ingressar no Senado como celetista, teve sua nomeação efetivada em 1985. Hoje, é aposentada pela Casa e, no mês passado, recebeu R$ 23,6 mil pelo benefício e R$ 16,8 mil como adiantamento do 13º salário. A reportagem não conseguiu contato com a ex-governadora.
O governador do Distrito Federal afirma, por meio de nota, que não existiu ilegalidade para o seu ingresso no Senado.
Leia abaixo íntegra do comunicado:
“É indevida a tentativa de fazer qualquer tipo de relação entre o ingresso de Rodrigo Rollemberg no Senado Federal, em 1982, ao que se chama de ‘trem da alegria’, tentando imputar a pecha de irregularidade na efetivação de servidores públicos, antes da Constituição Federal, de 1988, sob a alegação de ausência de concurso público.
Como é de conhecimento público, Rollemberg foi admitido na carreira de analista do Senado Federal por méritos próprios. O artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal, incluiu entre os beneficiados com a estabilidade os servidores não-concursados. Tal ato resolveu a questão daqueles que já eram servidores há mais de 5 (cinco) anos. O concurso só passou a ser exigido a partir da Constituição.
Existem milhares de funcionários públicos da União que ingressaram na Administração Pública antes da Constituição Federal, quando concurso público não era obrigatório. Ou seja, não é um fato ilegal.
Portanto, se não havia determinação legal que determinasse, à época, a participação de certame para a admissão no serviço público, nem a previsão de quando seria exigido o concurso público, não há que se falar em “trem da alegria”, expressão claramente pejorativa.
Sobre a lei da época, vale citar os artigos 32 e 46 da Constituição de 1967, constantes do Capítulo VI – Do Poder Legislativo, e que previam caber ao Congresso Nacional regular a criação de cargos de seus quadros:
Art. 32 – A cada uma das Câmaras compete dispor, em Regimento Interno, sobre sua organização, polícia, criação e provimento de cargos.
Art. 46 – Ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, cabe dispor, mediante lei, sobre todas as matérias de competência da União, especialmente: II – o orçamento; a abertura e as operações de crédito; a divida pública; as emissões de curso forçado; (…) IV – a criação e extinção, de cargos públicos e fixação: dos respectivos vencimentos.
Dessa forma, o Senado Federal editou a Resolução nº 58/1972, que dispunha “sobre o Regulamento Administrativo do Senado Federal”. Os artigos 3º e 4º do Regulamento Administrativo do Senado Federal previam:
Art. 3º – Os cargos e empregos da administração do Senado Federal são acessíveis a todos os brasileiros, observados, em cada hipótese, os requisitos estabelecidos, respectivamente, neste Regulamento e na Consolidação das Leis do Trabalho e legislação complementar.
(…) § 2º – Os contratos de trabalho, relativos aos empregos a que se refere este artigo, obedecerão a normas uniformes e fixarão níveis de salário de acordo com critérios estabelecidos pela Comissão Diretora.
Art. 4º – Os cargos são: I – de provimento efetivo; II – de provimento em comissão.
Assim, nota-se que o contrato de trabalho firmado entre o servidor e o Senado Federal, respeitava a resolução SF nº 58/1972, que era, portanto, a norma de regência à época.
Ademais, a Resolução nº 58/1972 do Senado Federal, com base na Constituição de 1967, era a norma que regulava a contratação de pessoal do órgão à época, razão pela qual o ingresso de Rodrigo Rollemberg nos quadros do Poder Legislativo se deu em estrita observância às normas então vigentes.
Dessa forma, qualquer alegação de suposta irregularidade do ingresso de Rodrigo Rollemberg no serviço público caracteriza informação sabidamente inverídica, deixando transparecer o objetivo dissimulado de tentar macular a reputação de Rodrigo Rollemberg.”
Impugnação na Justiça
O caso mais recente, no entanto, ocorreu em 1991 e só veio a público em 2009, após a divulgação do escândalo dos atos secretos. À época, 76 estagiários foram efetivados como servidores da gráfica do Senado, sem a realização de concurso público. Agaciel Maia era o diretor do setor no período. A medida não foi publicada no Diário Oficial da União.
Em 2012, após a divulgação do caso, o Ministério Público Federal no DF apresentou ação civil pública contra o ato. O Senado argumentava que, como foram contratados antes da Constituição de 1988, os estagiários estavam amparados pelas regras anteriores. O MPF-DF, no entanto, discorda:
“A interpretação adotada pelo Senado, porém, não considerou o prazo mínimo estipulado pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Ao contrário do que prevê a norma, os estagiários beneficiados pelo ato ilegal da Comissão Diretora haviam ingressado no Senado apenas em 1984 e 1985, portanto, a menos de cinco anos da promulgação da nova Constituição”, afirma o órgão. A ação tramita na 9ª Vara Federal de Brasília. Seis anos após o início do processo, ainda não há uma sentença.
Fonte: Metrópoles
Foto: Arte/Cícero/Metrópoles