Dogmas e hipocrisia que cerceiam o Terceiro Setor
Por Ana Paula Caodaglio (*)
O Terceiro Setor, que congrega as instituições e iniciativas de caráter particular, sem fins lucrativos, voltadas ao interesse público, ganhou especial relevância no Brasil ante a incapacidade dos governos de atender de modo pleno aos direitos sociais previstos na Constituição de 1988. No entanto, a realidade encarregou-se de evidenciar que parte expressiva desses organismos tem imensa dificuldade de se sustentar, é deficitária e se torna tão ou mais ineficiente e custosa quanto o próprio Estado.
Visando sanar o problema, criaram-se leis para fortalecer essas entidades, com regras claras e transparentes, dentre elas, as 9.790/1999, 9637/1998 e 13109/2014. Em alguns desses diplomas legais buscou-se regular e definir a remuneração de diretores e excedentes financeiros, bem como os seus meios de utilização.
No entanto, juristas, magistrados, doutrinadores e mestres, de modo dogmático e conceitual, passaram a considerar que as instituições do Terceiro Setor em geral não podem ser remuneradas, sequer por meio da taxa de administração/despesas operacionais, que se configuraria como lucro. Porém, a existência de uma entidade envolve custos, diretos ou indiretos, quantificáveis ou não, precificáveis ou não, relativos à sua manutenção e sustentação de suas atividades.
Ademais, e de maneira incontestável, a lei e suas regulamentações estabelecem que organizações do Terceiro Setor não estão impedidas de ter excedente operacional, não podendo apenas distribuí-lo sob qualquer título, e que auferem seu patrimônio executando diretamente ou prestando serviços, inclusive ao Poder Público. É claro, portanto, que devem buscar receitas para tanto, servindo, nesse contexto, a taxa de administração para custeio e fomento, inclusive no intuito de ampliar e melhorar suas atividades. Até porque, não se discute mais a remuneração dos conselhos e dos diretores das entidades, por meio de recursos oriundos dos diversos instrumentos de contratação no Terceiro Setor. Deveria essa remuneração ser feita diretamente pelo ente público, no bojo do instrumento, como um novo “departamento estatal”?
Entendida a plena legalidade da taxa de administração, equaciona-se a questão de custeio e se permite a máxima transparência, uma vez que eventuais excedentes deverão, igualmente por força de lei, ser aplicados no próprio objeto de atuação das entidades, de maneira a expandi-las e fortalecê-las, possibilitando que continuem a atuar nas áreas de interesse público. Frisa-se, ainda, que essas organizações estão sujeitas e obrigadas a prestar contas da utilização de todos os repasses e doações recebidas, não só aos Tribunais de Contas, como ao Ministério da Justiça. As fundações, por exemplo, são auditadas pelo Ministério Público. Garante-se, assim, que os recursos recebidos sejam exclusivamente destinados à implementação da atuação social, sob pena de perda da qualificação jurídica e responsabilização pessoal dos dirigentes.
O superficial entendimento de que a taxa de administração descaracteriza o caráter social, sem que se verifique a correta utilização dos recursos, equivale a dizer que nenhuma entidade pode crescer. Ora, impedida de se expandir e exercitar o fomento social, utilizando corretamente seus excedentes financeiros, o que seria uma organização do Terceiro Setor senão uma forma de burla às regras da administração pública, limitada a intermediar a compra de insumos e contratação de pessoas e serviços, contornando ilegalmente a lei de licitações?
Se apenas receber recursos públicos e repassá-los no pagamento de serviços de terceiros, como parecem defender os dogmáticos, o Terceiro Setor será mero apêndice governamental. Será sustentado pelo poder contratante, como um ramo da Administração, autorizado a remunerar seus dirigentes apenas para burlar as normas que regulam os demais atos administrativos.
É premente, portanto, colocar um fim à hipocrisia que tem permeado a questão, para que o Terceiro Setor, um dos maiores empregadores do País, possa cumprir de modo mais eficaz e transparente sua relevante missão, contribuindo mais efetivamente para a inclusão econômica e redução das disparidades sociais no Brasil.
*Ana Paula Caodaglio é sócia-titular da Caodaglio & Reis Advogados Associados.
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Fonte: Ricardo Viveiros & Associados Oficina de Comunicação
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