Efeito de lei contra revitimização será mais simbólico do que efetivo

Avaliação é de advogados e de membros do Ministério Público

Desde o início deste mês, está em vigor a lei que criou o crime de violência institucional, que prevê prisão de até um ano para o agente público que submeter vítimas ou testemunhas de crimes violentos a procedimentos desnecessários.

O alvo da lei é evitar a revitimização, também chamada de vitimização secundária. O conceito vem da criminologia e diz respeito a procedimentos que obriguem vítimas ou testemunhas a ter que reviver repetidas vezes a violência sofrida ou presenciada, gerando assim novas violências e novos traumas. Para que isso não aconteça, os depoimentos e as acareações devem ser reduzidos ao máximo, por exemplo.  

O texto da lei, contudo, é insuficiente para alcançar esse objetivo e muito raramente alguém deve ser processado pelo novo crime, avaliam advogados e membros do Ministério Público ouvidos pela Agência Brasil. Para eles, o efeito será mais simbólico do que efetivo.

Interpretação

Pela redação da nova lei, comete violência institucional todo servidor público que “submeter qualquer vítima de infração ou testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que as levem a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de estigmatização e sofrimento”.

Por meio de um novo artigo, o crime foi inserido no rol listado pela Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), o que em si já traz dificuldade em sua aplicação, avalia o advogado criminalista Matheus Falivene, doutor em direito penal.

“A Lei de Abuso de Autoridade exige um dolo específico para configurar o crime, o que já dificulta sua aplicação: é preciso que o ato tenha sido praticado pelo agente público com a finalidade específica de prejudicar alguém ou de beneficiar a si mesmo, ou por mero capricho e satisfação pessoal. Nos crimes violentos, em geral, é muito difícil comprovar esse tipo de dolo”, explicou Falivene.

A lei também peca por ser sintética e aberta demais, concordaram os entrevistados. “O texto tem um ou outro detalhe interpretativo que dificulta sua aplicação. O legislador empregou, por exemplo, as palavras no plural – atos ‘desnecessários’, ‘repetitivos’, ’invasivos’. Isso quer dizer que é preciso a repetição do ato infracional para configurar o crime? Isso ficou para a interpretação”, apontou a advogada Gabriella Miranda, especialista em Direito Público.

Estatuto da Vítima

O promotor Manoel Murrieta, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), apontou ainda outras lacunas na lei – como se dará a dinâmica processual do crime de violência institucional, quem vai fiscalizar quem? Como será feita a denúncia? Quem vai julgar tais casos nos fóruns país afora?

“Nada disso está descrito”, disse o promotor, que lidera a maior associação da classe no país. “Acho que vão ter grandes debates em torno da constitucionalidade” do novo crime, opinou Murrieta, que não descarta o questionamento da lei que o criou  no Supremo Tribunal Federal (STF).

Antes disso, contudo, o presidente da Conamp disse preferir que seja aprovado pelo Congresso o Estatuto da Vítima (PL 3890/20), projeto de lei que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados.

“Temos a expectativa de o estatuto trazer esse refinamento [sobre o crime de violência institucional]. Se não for possível, ai sim a gente vai analisar”, disse Murrieta sobre eventual ação da Conamp contra a nova lei de violência institucional. “Deixo muito clara a posição de nossa classe: nós somos muito claros em coibir [a revitimização], mas acho que precisamos ainda avançar na consolidação desse tipo penal”, acrescentou o promotor.

Prevenção

Uma das idealizadoras do projeto de lei, a promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, do Ministério Público de São Paulo (MPSP), explica que o Estatuto da Vítima pretende ser muito mais amplo e detalhado, sendo assim mais adequado, em sua opinião, para prevenir a revitimização, em vez de apenas puni-la, como prevê a criação do crime de violência institucional.

“O texto dessa nova lei [sobre violência institucional] está usando o direito penal de uma forma simbólica, como se o direito penal fosse capaz de modificar condutas, seja do policial, do promotor ou do juiz”, criticou a promotora. “É um instrumento muito aquém do que precisamos”.

O Estatuto da Vítima “trata dessa questão da revitimização de uma forma mais sistemática e técnica, designa o que seria essa conduta, estabelece as hipóteses em que as oitivas podem ser consideradas desnecessárias etc., não fica a cargo da discricionariedade de quem interpreta”,  explicou a promotora.

Celeste lidera o Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (Avarc), do MPSP, que desde 2018 utiliza técnicas preventivas à vitimização secundária, com acolhimento humanitário, emocional, jurídico e espiritual. “Tratamos o ser humano na sua integralidade”, resumiu ela. 

“Diferentemente de democracias mais avançadas, no Brasil não existem políticas públicas preventivas à vitimização, justamente por isso que estamos aguardando a aprovação do Estatuto da Vítima”, concluiu a promotora. 

O projeto de lei defendido por Celeste prevê, por exemplo, que as escolas de formação de agentes públicos designados para o atendimento às vítimas – como profissionais de saúde, da segurança pública e da justiça – ofereçam obrigatoriamente conteúdos voltados à prevenção da violência institucional contra vítimas, entre outras iniciativas.

Foto: Marcos Santos/USP

Deixe seu comentário