Exceção virou regra: governo federal faz 53% das compras sem licitação

 

Dos R$ 3,558 bilhões gastos de janeiro até o fim de março, apenas R$ 1,666 bilhão foi para empresas que disputaram com outras

Exatamente 53,2% das compras do governo federal nos primeiros três meses de 2018 foram concluídas sem a realização de licitações. Assim, apenas 46,8% dos serviços ou materiais adquiridos pelos quase 30 ministérios ligados ao Palácio do Planalto utilizaram o pregão, a concorrência, a tomada de preço ou o convite para selecionar as empresas envolvidas nas aquisições, como manda a Lei Geral de Licitações – nº 8.666/1993.

Em números, isso significa que, dos R$ 3,558 bilhões gastos de janeiro até o fim deste mês de março com material de limpeza, serviço de segurança e compra de passagens, por exemplo, apenas R$ 1,666 bilhão foi para empresas que passaram por alguma forma de licitação. O outro R$ 1,892 bilhão acabou pago a companhias que realizaram os serviços sem que houvesse disputa com outras concorrentes.

Mas 2018 não é uma exceção. Pelo contrário. Nos últimos anos, o governo federal vem adquirindo produtos e serviços sem licitações. Em 2017, por exemplo, chegaram a 56,12% as compras realizadas com dispensa ou inexigibilidade. Em 2016, o número foi um pouco maior: 60,7% (veja tabelas abaixo).

A queda percentual no decorrer dos anos, de acordo com o professor de Administração e Políticas Públicas José Simões, significa apenas um orçamento mais apertado, não que o modus operandi está mudando. “Hoje, com menos dinheiro vindo do governo, burlar as licitações fica um pouquinho mais difícil, porém alguns órgãos criam situações de emergência para solicitar até mesmo a liberação de recursos contingenciados. Muitas vezes, isso acontece de forma intencional para fugir do certame licitatório, por isso, não só Ministério Publico e os Tribunais de Contas precisam ficar de olho, como todos os cidadãos”, afirmou.

 

A legislação
De acordo com juristas, a licitação é um processo administrativo que permite a realização de contrato entre uma empresa e a administração pública. A intenção, com ela, é que qualquer interessado possa ter a chance de trabalhar junto ao governo, desde que se sujeite às condições fixadas e formule proposta. Assim, o processo licitatório é determinado pela Lei Geral de Licitações, e deve ser regido pelos princípios constitucionais da isonomia, da legalidade, da moralidade e da igualdade.

A própria legislação prevê algumas ocasiões em que a licitação pode ser dispensada. No entanto, isso deve ser limitado à aquisição de bens e serviços indispensáveis ao atendimento da situação de emergência, como prevê o artigo 24.

Outras situações são permitidas, como em caso de licitação frustrada por fraude ou abuso de poder econômico, contratação de pequeno valor, ausência de interessados, entre outras. Já a inexigibilidade de licitação ocorre quando não há possibilidade de competição entre empresas, isso porque só existe uma companhia ou uma pessoa que atenda às necessidades da administração pública.

O problema é que a lei que prevê o uso do processo licitatório nas contratações públicas vem sendo interpretada de maneira a torná-lo uma exceção no dia a dia do governo. “A licitação tem de ser a regra. No entanto, a maioria dos processos conseguem a sua dispensa por simples falta de organização, assim, as compras se tornam urgentes e passam a ser liberadas”, acusa José Jorge de Vasconcelos Lima, ex-ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) entre os anos de 2009 a 2014.

O máximo que deveria ser aceitável é 20% de compras sem o uso da licitação. Esse número seria o suficiente para englobar as situações emergenciais que aparecem, como desastres naturais, por exemplo. Mais de 50% é um número inaceitável

Ex-ministro do TCU, José Jorge

A opinião do ex-membro da Corte é compartilhada pelo especialista em Administração e Políticas Públicas José Simões. “Em alguns casos, a dispensa de licitação pode, sim, ser normal e é até recomendada. Mas cabe à gente ficar de olho quanto a isso, para que a dispensa não seja uma maneira de burlar as leis públicas. Quando olhamos esses valores bilionários, saltam aos olhos. Em muitos casos, os órgãos públicos deixam a situação avançar, o processo licitatório anterior caducar, aí já está na hora de contratar por emergência e dispensar a licitação”, completou o professor.

Exemplos
Metrópoles teve acesso a algumas compras de serviços e materiais que foram realizadas sem licitação, em 2018, pelo governo federal. Entre elas, estão a aquisição de materiais de limpeza, escritório, informática e até água mineral. Há ainda contratação emergencial de empresas que prestam serviços de segurança, de combate e prevenção de incêndios, de manutenção de telefonia, de motoristas e de computação.

Algumas compras chamam a atenção, como a contratação emergencial de “serviços de agenciamento de viagens para voos regulares domésticos e internacionais”. O Ministério do Turismo, por exemplo, contratou uma empresa para prestar esse serviço no valor de R$ 2,004 milhões; e o do Meio Ambiente, no valor de R$ 782 mil. Procurada, a pasta de Turismo informou que não realizou a licitação, mas atuou como órgão participante de um certame realizado pelo Ministério do Planejamento. Já o Meio Ambiente não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Outra contratação com dispensa de licitação foi realizada pelo Ministério dos Direitos Humanos. O órgão pagará R$ 249.900 para alugar o Centro Internacional de Convenções do Brasil (CICB), por apenas quatro dias, durante a realização da IV Conferência de Promoção da Igualdade Racial, em maio. Em nota, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do ministério informou que a contratação do CICB ocorreu dentro dos trâmites legais da Lei Geral de Licitações, já que há previsão de dispensa de licitação desde que o preço seja compatível com o mercado, segundo avaliação prévia.

Já o Ministério da Agricultura contratou uma empresa especializada em prevenção e combate de incêndio no valor de R$ 4,932 milhões e não respondeu o motivo de o serviço ter sido adquirido sem licitação. Enquanto isso, a pasta dos Transportes desembolsou R$ 6,499 milhões para restaurar um trecho da BR-116 após um desmoronamento de encosta, em Muriaé, na Zona da Mata mineira. A verba foi liberada sem licitação, por se tratar de um serviço de emergência após desastre.

Questionado pela reportagem sobre o porquê de os órgãos realizarem aquisições e contratações sem licitação, o Ministério do Planejamento disse apenas que há várias hipóteses de dispensa e inexigibilidade. “A instrução da aplicação da modalidade é feita em processo administrativo, que é submetido aos dirigentes de cada órgão (ordenador de despesa e autoridade máxima), a quem compete aprovar a aquisição/contratação por meio dessas modalidades, após a análise jurídica dos autos”, afirmou.

 

Fonte: Metrópoles

Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles

 

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