FÉ, RAZÃO E… ALIENAÇÃO

Por Percival Puggina (*)

A aparente contradição entre a fé e a razão suscita um debate que – mais do que recorrente – tem sido permanente nos últimos três séculos da história. Durante todo esse período, assim como houve quem lesse a Bíblia como um livro científico, houve quem lesse os livros da ciência como obra revelada e nesse teimoso engano abriram-se trincheiras que ainda hoje persistem em mentalidades mais renitentes. Contudo, a verdadeira fé, por ser ato humano, não prescinde da verdadeira razão.

Que a Bíblia não é um livro científico parece mais do que evidente. E que a razão e a observação – a testa e o tato – não são as vertentes definitivas do que é verdade ou verdadeiro, deveria ser igualmente óbvio. Conforme Karl Popper (um agnóstico que não pode ser apresentado como defensor da religiosidade), nossos sentidos costumam nos iludir, as verdades científicas são sempre hipóteses provisórias e acreditar que a razão produz a verdade é outra espécie de fideísmo (qualquer bom filósofo sabe o quanto a razão conduz a paradoxos).

A dimensão religiosa é natural à pessoa humana, assim como o são, entre outras, as dimensões artística, moral, econômica e política. Qualquer uma delas pode ser desenvolvida ou não e o fato de perder impulso no transcurso da existência de algumas pessoas não significa que tenha deixado de existir. Por isso, o fenômeno religioso é presente em todos os povos e épocas. Há dezoito séculos, Plutarco já sustentava: “Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem leis, sem moeda, sem cultura das letras. Mas um povo sem Deus, oração, juramentos, ritos, tal nunca se viu”. Todo conhecimento antropológico posterior veio corroborar essa observação, assim como veio comprovar a preeminente posição da religiosidade em todas as culturas.

Joachim Wash, em seu Estudo comparativo das religiões, ensina que a experiência religiosa é uma resposta do homem à realidade última das coisas, a qual se expressa num Ser superior, transcendente e, todavia, susceptível de relacionar-se com ele; que orientar-se para esse Ser exige do homem uma resposta total e que dele aproximar-se constitui uma experiência inigualável, criativa e transformadora.

A naturalidade da dimensão religiosa jamais oblitera e ressurge, inclusive, nas explicações redutivas, de cunho científico, que a pretendem suprimir. Em todas há uma fé (ainda que na matéria, na natureza, no próprio homem, nas leis econômicas, no valor da sensualidade, na política, etc.) e, consequentemente, em todas há uma doutrina inquestionável e alguma forma de culto. Por isso, Max Scheler, não sem alguma ironia, afirma ser impossível se convencer alguém de que Deus existe pela mera razão. Mais fácil, constata ele, é mostrar que essa pessoa colocou algo no lugar de Deus: a si mesmo, a riqueza, o poder, o prazer, a beleza, a ciência, a arte, etc.. De fato, é curta a distância, mas há um abismo qualitativo entre o amor a Deus e a idolatria.

Dada a naturalidade do fenômeno religioso e da dimensão religiosa do ser humano, recusá-las é negar realidade ao próprio ser. E isso é uma forma de alienação. Como a vida se encarrega de evidenciar, se adotamos a Razão por fonte única da verdade, deixamos o homem sem possibilidade de resposta para as maiores questões de sua existência – tais como o sofrimento, o amor, a esperança, a morte e a própria finalidade da vida – que não se resolvem no plano da razão ou no dos sentidos. Ignorá-las, como tantos ensaiam fazer, é pura e simples alienação.

Plutarco: De natura deorum, citado em Religião e Cristianismo (ITCR PUCRS)

Karl Popper: conforme citado por Vitorio Messori em Pensare la Storia.

Max Scheler: resumido da citação feita à obra Vom ewigen im Menschen, em Religião e Cristianismo (idem).

Joachim Wash: conforme o livro que me emprestou (sintetizei o que consta da página 45).

(*) Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

*Artigo de responsabilidade do autor.

Fonte: Site puggina.org, gentilmente disponibilizou este artigo para o Brasília In Foco News

Foto: Reprodução

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