GDF demora até 24 anos para exonerar servidores condenados por crimes
Levantamento do Metrópoles revela que muitos só são demitidos décadas após condenação na Justiça. Nesse tempo, continuam recebendo salários
Condenados por crimes graves como homicídio, estupro e corrupção, servidores públicos mantêm cargos e salários por anos enquanto os processos administrativos tramitam morosamente no Governo do Distrito Federal. Em um dos casos, um policial militar condenado por matar um estudante durante briga de trânsito em 1993 continuou na folha de pagamento por 24 anos até ser exonerado em 2017. Ele recebia salário de R$ 7 mil.
Algumas situações chocam por inverter a lógica do serviço que deveria ser prestado à população. Neste rol, estão delegados corruptos, agentes penitenciários suspeitos de ajudar em fugas de presos, conselheiros tutelares acusados de assediar adolescentes, médicos e enfermeiros condenados por estupros dentro de hospitais da rede pública. Mesmo diante da gravidade e da possibilidade dos servidores manterem a conduta criminosa, os processos não escapam da lentidão.
Para a professora Maria Stela Grossi Porto, especialista em Segurança Pública do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), a morosidade do sistema de Justiça é mais danosa no caso de servidores públicos porque, nesses casos, tempo é dinheiro, e público. “São trabalhadores que continuam recebendo, ocupando os cargos e podem, inclusive, cometer novas infrações”, alerta.
Em fevereiro deste ano, o Metrópoles denunciou que o policial civil que baleou uma criança de 6 anos continuava recebendo salário de R$ 14 mil. Em janeiro de 2017, Sílvio Moreira Rosa abriu fogo contra o carro onde a criança estava. O crime foi na BR-070, que estava congestionada por conta de reparos. O policial teria ficado irritado porque o pai do menino tentou ultrapassar outros veículos pelo acostamento. Atingindo no peito, Luís Guilherme Caxias perdeu as funções do pulmão direito.
Casos como o dos policiais não são exceções. Com base na Lei de Acesso à Informação, o Metrópoles analisou todas as punições aplicadas pelo GDF em 2018 e 2017 a servidores que cometeram crimes. No ano passado foi registrado o maior número: 64. No entanto, a maioria das sanções foi aplicada a servidores que cometeram crimes muitos antes de Rollemberg assumir o Palácio do Buriti.
Em 2018, 11 servidores foram alvos de sanções. Três deles perderam o cargo de conselheiro tutelar — dois por crimes administrativos, como ter outra fonte de renda, e um por assediar uma adolescente. Outros três subsecretários de Esporte, investigados desde 2011, na gestão de Agnelo Queiroz, foram punidos por não cumprirem os procedimentos estabelecidos para a locação de espaços para eventos administrados pela pasta.
Caixa de Pandora
Entre os punidos por corrupção no período pesquisado estão gestores envolvidos na Caixa de Pandora, escândalo que derrubou o então governador José Roberto Arruda (PR), em 2010.
Três membros do alto escalão do governo Arruda foram alvo de sanções em 2017: o ex-secretário adjunto de Transportes Júlio Urnau, o ex-diretor do DFTrans Paulo Henrique Barreto Munhoz da Rocha e a ex-diretora administrativo financeira do órgão Maria Lêda de Lima e Silva.
Eles são acusados de promover uma verdadeira farra com dinheiro público em um convênio que deveria facilitar o acesso de portadores de deficiência ao mercado de trabalho. O ex-diretor do DFTrans é um dos personagens dos vídeos da Caixa de Pandora.
Na gravação, Munhoz recebe um maço de dinheiro em notas de R$ 20 e de R$ 50. Os três foram punidos com a conversão da exoneração em destituição de cargo público. Com a sanção, podem ser impedidos de voltar aos quadros do GDF durante 10 anos. Outro envolvido no escândalo é o professor Gibrail Nahib Gebrim, que perdeu a aposentadoria de R$ 15 mil em 2017.
24 anos sem punição
A maioria dos casos de assassinatos envolve policiais militares. Alguns foram motivados por situações corriqueiras, como discussões no trânsito e até mesmo um esbarrão em uma festa. Dois deles chamam a atenção pela demora da tramitação dos processos – tanto na Justiça quanto nas instâncias da PMDF e do GDF.
Em 1993, dois policiais militares foram presos em flagrante por matar um estudante em uma briga de trânsito no Setor Policial Sul. Um deles era Cleudo Ferreira de Carvalho. Em 2016, Carvalho foi condenado a 12 anos de prisão pelo Tribunal do Júri de Brasília. Mesmo com a sentença, o militar continuou na folha de pagamento da PMDF, com salário de R$ 7 mil, até agosto de 2017.
Em outro caso, a expulsão da corporação veio ainda mais tarde: dois anos depois da sentença. Francisco Assis Victor Neto foi condenado por tentativa de homicídio qualificado em 2015. Ele atirou contra um adolescente após um esbarrão em uma festa. Mesmo com a condenação, manteve o salário de R$ 12 mil até novembro de 2017.
A PMDF informou, por meio de nota, que os “procedimentos demissionários tardaram por conta da demora dos vereditos dos respectivos processos judiciais”. No entanto, a corporação não esclareceu os motivos de os militares terem continuado nos cargos por anos, mesmo com as condenações na Justiça.
Corrupção
Alguns casos de crimes contra a administração pública beiram o absurdo. Como, por exemplo, um delegado que fazia vista grossa e protegia grileiros em troca de dinheiro. Em uma investigação da Polícia Civil de 2012, o delegado Severo Benício dos Santos foi preso por suspeita de corrupção passiva, extorsão e estelionato em uma operação que apurava o parcelamento irregular do solo. Ele perdeu o cargo em fevereiro de 2017.
Em 2011, um agente penitenciário teria recebido R$ 15 mil por duas serras, que foram utilizadas na fuga de seis presos na Papuda. Seis anos depois, Aroldo de Abreu Souza continuava recebendo salário. Ele só foi exonerado em março de 2017.
O dinheiro também falou mais alto que as obrigações como servidor público para um policial civil condenado a 53 anos de prisão por aplicar golpes em idosos. Adamastor Castro e Lino Andrade Júnior fazia parte um esquema criminoso que clonava cartões e limpava as contas bancárias de pessoas na terceira idade.
Violência sexual
Em 2013, um médico e um enfermeiro do Hospital Regional do Paranoá foram presos por estuprar pacientes. O ginecologista e obstetra Humberto Orellana Quinteros teria violentado oito mulheres, entre elas, uma adolescente.
No mesmo ano, a Corregedoria da Secretaria de Saúde publicou um parecer recomendando a demissão do médico. Mas o ginecologista continuou recebendo salário de R$ 18 mil até junho de 2016. A demissão só foi oficializada em 2017. Preso no mesmo ano, um auxiliar de enfermagem teria violentado uma paciente que estava em recuperação de uma cirurgia.
Aproveitar o cargo para cometer crime sexual também foi o caso de um conselheiro tutelar. Segundo a denúncia, em 2015 o homem trocava mensagens “picantes” e pedia nudes para uma adolescente atendida por ele. As conversas foram descobertas pela mãe da menina, que registrou o caso na delegacia. Ele foi exonerado em 2017.
Um major da PM também foi punido com a perda da aposentadoria de R$ 18 mil por manter relações com adolescentes. O crime ocorreu em 2009, mas ele seguiu na corporação até o ano passado.
Trâmites
O controlador-geral adjunto do Distrito Federal, Marcos Tadeu de Andrade, reconhece que o andamento dos processos administrativos muitas vezes é lento e complexo. “É necessário definir a autoria e a materialidade, apurar, esgotar toda a defesa e ouvir testemunhas”, detalhou. Paralelamente a isso, os alvos podem recorrer das ações administrativas na Justiça.
Para Andrade, a punição de servidores que cometeram crime há muitos anos é resultado do esforço do governo para não deixar as ações esquecidas nas gavetas. “Os processos administrativos da Caixa de Pandora, por exemplo, estavam parados e foram resgatados no início da atual gestão. Demos andamento e seguimos tentando cumprir com a responsabilidade do governo de investigar e punir”, disse.
Defesas
O Metrópoles entrou em contato com todos os advogados dos servidores citados na reportagem. Alguns não foram localizados, outros preferiram não comentar.
Entre os defensores que atenderam a reportagem, todos ressaltaram que seus clientes estavam apenas exercendo o direito de ampla defesa.
Já o responsável pela defesa do policial Francisco Assis Victor Neto, o advogado Antônio Adonel Gomes Araújo, explicou que “ele manteve o cargo enquanto tramitavam os recursos. A presunção de inocência vale para todos e a Justiça é lenta”.
Fonte: Metrópoles
Foto: KACIO PACHECO/METRÓPOLES