Intensa pesquisa sobre o Candomblé virou um best-seller
*PJ Pereira
Meu primeiro contato com esse furacão que mudou minha vida foi no velório da mãe de um grande amigo. Ele era filho de mãe Cleuza, ialorixá do Gantois e filha da famosa Mãe Menininha. Eu acompanhei o cortejo do terreiro até o cemitério e fiquei encantado com a mistura, o respeito, a riqueza da procissão. As milhares de pessoas cantando em uma língua que eu desconhecia. O choro sofrido dos milhares que haviam perdido uma mãe. A presença confortável de padres, freiras entre os homens e mulheres girando com os olhos revirados. Uma cena tão marcante que virou até uma cena no terceiro livro da trilogia.
Numa determinada altura, um sujeito recebeu um santo bem do meu lado e começou a rodar. Logo atrás, um repórter apontou sua câmera e se preparou para apertar o botão. Foi quando uma mão acertou-lhe a objetiva, quase jogando o equipamento no chão. Uma mulher de branco, furiosa, estendeu-lhe o dedo: “me admira você, daqui da Bahia, que sabe muito bem que não se tira foto de orixá, tentando fazer isso logo hoje?” O rapaz baixou a vista, envergonhado e a mulher voltou a caminhar com a procissão, seguindo o canto entoado por um pai de santo que vinha atrás. Aquela mulher era Gal Costa.
No início, minha presença nos terreiros era vista com uma certa desconfiança. Afinal, sempre é possível que os “estrangeiros” perguntando por aí queiram apenas se aproveitar da cultura da casa para usar de formas que denigrem o povo de santo. Não foram poucas as vezes que isso aconteceu, eles me contam.
Numa dessas conversas, das primeiras que tive, fui conversar com uma pessoa muito influente no Gantois. Eu estava em Salvador e havia mandado um recado convidando-a para uma conversa. Foram alguns dias sem resposta e de repente, ela mandou um recado de volta dizendo que estava tudo pronto e que poderia me receber.
Chegando lá, ela me abraçou com um carinho que não combinava com a desconfiança e me disse:”Oxóssi me disse para lhe contar o que você quisesse saber.” – Ela, filha de santo do orixá caçador, me disse que ele era o meu orixá também e que essa autorização não acontecia tão fácil, então que eu tomasse a responsabilidade com muita seriedade. Foi um dia importante. “Façamos o seguinte” – eu disse – “eu vou perguntar o que estiver tentando responder, e você não me conte nada que eu não deva saber. Assim, se eu contar algum segredo, será porque ou eu inventei ou deduzi, não porque desrespeitei o santo.” Assim ficou firmado meu “contrato” com os orixás.
Dizem os conhecedores do santo que tem várias coisas que eu conto que eu não deveria saber, muito menos falar, mas como eu nunca tive acesso a essa informação, deve haver alguma razão para eu ter tido esse acesso intuitivo ao que eles chamam de “conhecimento ancestral.” Até hoje eu não sei quais são as invenções que eu acertei, quais as que errei, nem fiz questão de perguntar. Melhor assim.
Fui a um evento chamado Águas de Oxalá. É lindo, com todo mundo de brando e uma energia que lhe abraça com carinho e hospitalidade. A comida sacralizada e compartilhada, a alegra das pessoas… tudo muito encantador. Mas então os santos começaram a baixar. Com os olhos para dentro da cabeça e os braços para trás, eles gritavam brados que mais pareciam de guerra que de paz. Eu apertei a mão da minha mulher.
Ao final, perguntei. Como era possível num evento de celebração do orixá da paz, tantos gritos de guerra? A explicação e o contexto fizeram sentido: quando os escravos vieram, roubados de suas famílias, trouxeram todos os seus deuses com eles. Mas acorrentados das senzalas pelo Brasil, sobreviveram naturalmente o culto dos orixás guerreiros que os faziam mais fortes, os preparavam para enfrentar a opressão e a violência dos fazendeiros que os aprisionavam. Eles então me serviram a comida feita com tanto carinho para os orixás e os convidados, e um deles me abraçou, um Oxalufã, o Oxalá velho. E no meio de tantos guerreiros, eu entendi a paz que eles falavam. Passei a noite com medo, saltando a cada um desses gritos, confuso com o significado daquilo tudo.
Um homem carregando o velho orixá me segurou por uns instantes e foi embora. Não disse nada, o que me surpreendeu. “Achei que eles diziam alguma coisa” – perguntei. Me responderam: “Na umbanda, as entidades falam, aqui, elas só vêm dançar conosco. Esse que está aí é um fragmento da energia que chamamos de Oxalá. Um pedacinho pequeno. Porque os Orixás são as forças da natureza.
Ao longo da pesquisa, recebi vários convites para me juntar ao povo de santo. Para fazer a cabeça. Em várias casas diferentes. Agradecido pelo carinho, nunca aceitei nenhum deles. Não por desgostar ou desacreditar. Muito pelo contrário. Minha atração pelo santo é muito grande. Mas naquele dia que combinei meu contrato com Oxossi, na primeira das entrevistas, eu decidi que não contaria segredos.
A iniciação me daria acesso a esses segredos que eu não poderia contar. Além disso, fazer parte formalmente da religião levaria meus leitores e detratores a questionar se meus livros seriam uma iniciativa proselitista, e esta não é minha missão. Assim eu mantenho uma certa distância, segura e respeitosa. Mas às sextas feitas, em respeito e carinho, estou sempre de branco.
*Sobre o autor: PJ Pereira é escritor, autor da trilogia best-seller Deuses de dois mundos, que lhe rendeu o Prêmio Luiza Bairros pela contribuição à cultura africana no Brasil. Nascido e criado no Rio de Janeiro, sempre foi fascinado pelas tradições religiosas do Nordeste, de onde vieram seus avós. Daí saiu a inspiração para seus livros. Atualmente mora na Califórnia com a mulher e o filho.
Sobre livro: De repente, os instrumentos de Orunmilá se calam. Qual será o motivo do silêncio de Ifá? A força e a ajuda de Exu, Ogum e Oxóssi serão suficientes para que o maior adivinho da África ancestral reencontre seus poderes? Já na caótica São Paulo dos dias atuais, o jovem jornalista New se vê envolvido em uma missão a que parecia destinado desde o berço, mas com a qual ele não consegue se identificar. Na aclamada trilogia Deuses de Dois Mundos, PJ Pereira desafia o limite entre o conhecido e o desconhecido, o estranho e o maravilhoso, o real e o fantástico. O leitor é conduzido a uma viagem entre os níveis de existência do Aiê, a terra dos homens, e do Orum, o mundo em que, de acordo com a rica mitologia africana, vivem os orixás.
Ficha técnica:
Deuses de Dois Mundos – O Livro do Silêncio
PJ Pereira
288 páginas
R$49,90
Fonte: LC – Agência de Comunicação – São Paulo/SP
Foto: Divulgação