Livro investiga o impacto da mineração na obra de Drummond

 

O crítico José Miguel Wisnik propõe uma funda releitura de pontos cruciais da poesia do mineiro

Itabira, a “cidadezinha qualquer” onde nasceu Carlos Drummond de Andrade, surgiu pela primeira vez na obra do poeta em 1926, quando dali ainda se via, projetando-se da serra, o majestoso pico do Cauê.

Em 1973, quando o escritor mineiro publicou “A Montanha Pulverizada”, o relevo havia sido consumido pela máquina mineradora. “Esta manhã acordo e não a encontro,/ britada em bilhões de lascas, / deslizando em correia transportadora / entupindo 150 vagões.”

Em 2014, o acaso levou o crítico e ensaísta José Miguel Wisnik a Itabira. Reconheceu ali as pegadas da cidade poética dos livros, mas não presumia que o contato com a realidade geográfica e material itabirana pudesse causar impacto tão significativo.

“A minha sensação imediata foi a de que a ‘máquina do mundo’ do poema famoso estava ali, não somente como entidade poética e metafísica, que também é, mas como um acontecimento histórico que se deu surdamente em câmera lenta ao longo do século 20, quando Itabira esteve no epicentro oculto da mineração brasileira”, diz Wisnik, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo por email, na qual comenta aspectos de seu novo livro, “Maquinação do Mundo” (Companhia das Letras, R$ 64,90, 328 págs.).

No ensaio, à luz da experiência avassaladora da mineração, o crítico propõe uma funda releitura de pontos cruciais da poesia de Drummond -do enigmático e fulcral poema “A Máquina do Mundo” à memorialística de “Boitempo”, publicada entre 1968 e 1979.

Wisnik encara a tarefa de trazer à tona um aspecto crucial de Itabira que, embora evidente, permanecia obscurecido, nas leituras sobre Drummond, pela percepção da cidade sobretudo como um lugar encerrado no mundo provinciano da infância do poeta, de sua família e de suas reminiscências.

Trata-se de uma espécie de tomada de consciência da cidade assentada sobre as maiores jazidas de minério de ferro do mundo e que entrou, por essa via, no contexto do capitalismo internacional.

A seguir, o ensaísta fala sobre seu novo livro.

PERGUNTA – Você poderia reconstituir um pouco o impacto provocado pela sua visita a Itabira? Foi uma epifania sobre o modo como essa dimensão se ocultava e ao mesmo tempo estava clara no enigma poético drummondiano?

JOSÉ MIGUEL WISNIK – Exatamente. Num primeiro momento, a viagem casual a Itabira fez ver a enormidade histórica da mineração na cidade natal do poeta.

A “cidadezinha qualquer”, com ferro nas calçadas e nas almas, ruminando a pasmaceira provinciana e remoendo o passado familiar oligárquico, que conhecemos da poesia de Drummond, é também o palco de uma espantosa intervenção mineradora que se abateu sobre a cidade, convertendo montanha em cratera, criando uma atmosfera saturada de pó de ferro e fazendo da fazenda do Pontal, fazenda da infância do poeta, um campo de rejeitos da mineração.

A minha sensação imediata foi a de que a “máquina do mundo” do poema famoso estava ali, não somente como entidade poética e metafísica, que também é, mas como um acontecimento histórico que se deu surdamente em câmera lenta ao longo do século 20, quando Itabira esteve no epicentro oculto da mineração brasileira.

De fato, a cidade entrou na mira do olho guloso do mundo desde 1910, quando companhias estrangeiras correram para comprar a preço de banana as jazidas do quadrilátero ferrífero mineiro.

A empresa anglo-americana Itabira Iron Ore Co. foi objeto de acirrada discussão política sobre o destino da mineração e da siderurgia durante três décadas. A Companhia Vale do Rio Doce foi criada em 1942 para explorar e exportar o ferro itabirano do pico do Cauê, em 1942, no contexto dos acordos de Washington e da entrada do Brasil na Segunda Guerra. E, depois, cresceu para o mercado mundial do pós-Guerra e se tornou uma das maiores empresas mineradoras que existem.

Marcas disso estão presentes do começo ao fim da obra drummondiana, na poesia, em crônicas, na polêmica jornalística que ele travou com a Companhia. De maneira cifrada, interpreto que elas estão entranhadas no poema “A Máquina do Mundo”, escrito pouco tempo depois de Drummond ter viajado na “máquina frágil” e “aventureira” de um pequeno avião, de Belo Horizonte a Itabira, de ter divisado a imensidão de Minas do alto, como nunca tinha visto, e de ter se deparado, na mesma viagem, com as dinamitações do pico do Cauê e vislumbrado o seu desmanche por uma empresa estatal que se articulava com o mercado mundial.

Poucas vezes a mitologia mais íntima de um poeta contracena de tal modo com a geoeconomia do mundo. Fique claro que o que interessa ao meu livro, mais que a história da mineração, é a leitura da poesia, a complexidade e a potência da poesia, posta em contraponto com as circunstâncias históricas e biográficas que nos permitem minerar mais camadas do “claro enigma”.

P. – O percurso do livro segue em parte, como você mesmo observa, um roteiro que a crítica literária mais elaborada tende a rejeitar: a busca da circunstância biográfica ou geográfica como entrada para o desvendamento da obra. Como você se defrontou com essa questão? Ela mostrou-se incontornável? A experiência de Minas teria uma singularidade quanto a isso, já que você também menciona Guimarães Rosa?

JW – Dei aulas sobre Drummond ao longo de décadas, mas algumas horas em Itabira produziram revelações sobre a obra do poeta que nunca tinham me ocorrido. O livro é, praticamente, uma extensão desse efeito, cujas consequências procurei pesquisar, confirmar e explorar.

Por isso mesmo, faço provocação e brinco com a autossuficiência da crítica textual que dá o texto literário como uma escritura acabada desde sempre e para sempre, em detrimento dos processos com os quais está envolvido. Mas isso sem reduzir o poema às circunstâncias, pois o essencial “perante a poesia”, pra usar as palavras do poeta, é “penetrar surdamente no reino das palavras”.

Minas Gerais apresenta sim uma motivação toda especial para a crítica literalmente viajante: a biodiversidade do cerrado na linguagem de Guimarães Rosa, os rios subterrâneos dos seus recados, a mineração enigmática de Drummond. A pedra no meio do caminho e a terceira margem do rio.

Os dois conversam com os morros. A obra de Drummond anuncia a devastação mineradora, cuja consumação ele chegou a assistir (veja-se o poema “A Montanha Pulverizada”); a obra de Guimarães Rosa é o esplendoroso canto do cisne do cerrado. As duas se encontram, de certa forma, na catástrofe de Mariana, quando os rejeitos da mineração desabam sobre o sistema fluvial e sobre sítios povoados do mundo rural mineiro.

P. – O desvelamento do lugar de Itabira no real e seu rearranjo na subjetividade do poeta levam à releitura de uma série de poemas de Drummond à luz das implicações da máquina da mineração em seus vastos e pequenos mundos. Ao analisar esses poemas, você chega a uma revisão de “Boitempo”, obra que foi entendida como uma espécie de manifestação tardia conformada do poeta com o passado oligárquico de origem. Em linhas gerais, que reavaliação você propõe desse livro?”

JW – “Boitempo” é uma obra tardia, no sentido preciso de que é uma obra em que as grandes apostas frente ao mundo e à linguagem já foram feitas pelo poeta, e em que ele contracena surdamente com a morte e explicitamente com a infância.

Os grandes dramas de classe e o confronto com o pai já foram atravessados por dentro, e de certa forma serenam na lembrança. Mas isso não quer dizer que seja um livro regressivo, e uma identificação acabada, em última instância, com o mundo patriarcal.

A violência patriarcal está exposta, em alguns momentos, com crueza pungente.

Junto com o cotidiano provinciano, e com os dilaceramentos do menino que se defrontava à distância com o assombro da Primeira Guerra Mundial, o livro oferece cenas preciosas e penetrantes sobre os primeiros movimentos da escalada mineradora, a pequena siderurgia local, a compra das jazidas itabiranas por ingleses e americanos e a presença ao vivo, ou espectral, dos altos interesses financeiros, das corporações e seus emissários, permeando insidiosamente a “vida besta” da “cidadezinha qualquer” (tudo isso desembocando no “trem-monstro” que levou embora a montanha).

P. – A empreitada mais ambiciosa é a releitura de a “A Máquina do Mundo”, na qual à dimensão do “ser” se acrescenta a do “capital”. Particularmente interessante é a hipótese sobre a recusa à proposta da máquina, que seria antes uma recusa à explicação de tudo oferecida pela máquina da tecnociência e dos dispositivos do capitalismo do que uma recusa a se encontrar com a apreensão da totalidade “cósmica”, tal como se poderia supor na ordem pré-capitalista do mundo encantado. Você poderia falar um pouco de como chegou a essas linhas de interpretação?

JW – O poema “A Máquina do Mundo” conta com uma densa e altamente reveladora fortuna crítica, com a qual dialogo, introduzindo o viés da mineração.

Mas não se trata de reduzir o poema a uma explicação causal pela via histórica, e sim de colocar em contraponto com ele uma massa de acontecimentos históricos e biográficos que vinham se desenrolando há décadas, e que chegam a um ponto de precipitação no momento de sua escrita.

Para efeitos da interpretação, é crucial a passagem em que se apresenta, em sete estrofes, uma visão contemporânea da máquina do mundo. Essa passagem permaneceu quase sempre numa espécie de ponto cego das leituras, talvez porque ela descreva um inominável que se tornou nosso íntimo hoje: um mundo dominado em toda escala objetiva e subjetiva pelos dispositivos de dominação e exploração da “grande máquina” capitalista, que transforma tudo quanto existe em estoque da sua manipulação construtiva e destruidora.

Como se não bastasse, o poema coloca ainda e sempre essa máquina em relação com a máquina cósmica e poética do mundo, com o ser, com “o absurdo original e seus enigmas” e com “o solene sentimento de morte, que floresce / no caule da existência mais gloriosa”. Com informações da Folhapress.

 

Fonte: Notícias Ao Minuto

Foto: Fundação Carlos Drummond de Andrade

 

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