Máfia das Próteses: Anvisa permite funcionamento de empresas suspeitas
Companhias que foram denunciadas ao MP pela própria agência mantêm autorização para atuar no mercado de próteses
Das cinco empresas apontadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como participantes de uma possível máfia que fornece próteses clandestinas, quatro estão funcionando normalmente. Conforme o Metrópoles noticiou, a agência fiscalizadora denunciou o suposto esquema, que teria vitimado ao menos nove pessoas com implantes na cabeça de moldes irregulares em vez de peças sanitárias. Apesar disso, as investigadas mantêm alvarás de funcionamento, garantidos pelo próprio órgão federal.
Além de terem o Atestado de Funcionamento de Empresas (AFE), documento expedido pela agência, e apesar da denúncia encaminhada pelo órgão regulador ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), atendiam normalmente, na segunda-feira (7/5), os seguintes estabelecimentos: Bioconect – Indústria e Comércio de Produtos Médicos e Odontológicos; 3D Sint – Comércio de Produtos Médicos; WMA Micro Usinagem Médica Odontológica; e Critéria – Indústria e Comércio de Produtos Medicinais.
A reportagem entrou em contato por telefone com todas as empresas mencionadas no relatório, e apenas a URI – Comércio, Importação Exportação de Produtos Médicos não foi encontrada.
O estabelecimento é justamente o de propriedade do cirurgião bucomaxilo Paulo Hemerson de Moraes. Segundo a Anvisa, Paulo foi o responsável pela ideia de utilizar exames radiográficos para a confecção de peças sob medida feitas por impressoras 3D.
Parceria à revelia
Conforme o documento aponta, Moraes soube que o então diretor de inovação em Laser do Serviço Nacional da Indústria (Senai-SC), Edson Costa Santos, utilizava a estrutura da entidade para desenvolver projeto com essa tecnologia. Segundo a denúncia da Anvisa, Paulo e Edson associaram-se e começaram a fabricar implantes clandestinos, emitindo notas fiscais adulteradas e até com nomes de pacientes no campo de observações.
As peças, que deveriam ser produzidas apenas para o projeto de inovação do Senai, passaram a ser comercializadas criminosamente. “Nenhum teste era realizado, e os pacientes foram transformados em cobaias humanas”, destaca o relatório. Os dois personagens associaram-se à revelia do Senai. Após denúncia à Anvisa, uma operação interditou a unidade de Joinville (SC), fato que motivou a demissão sumária de Edson Costa Santos.
Fontes ligadas ao mercado de próteses informaram que Edson teria se mudado para a Alemanha, enquanto Paulo mora, atualmente, em Portugal. Pelo menos 191 peças produzidas por essa parceria ainda estão sendo procuradas pelo órgão fiscalizador.
Funcionamento normal, segundo Anvisa
À época da operação em Joinville, a Anvisa informou que, após o devido processo legal, as empresas envolvidas nas fraudes poderiam pagar multas administrativas de até R$ 1,5 milhão. Outras sanções sanitárias possíveis são notificações, interdições e até mesmo o cancelamento dos alvarás de funcionamento.
No entanto, seis meses após a expedição do documento ao Ministério Público de São Paulo, as companhias envolvidas continuam em funcionamento, inclusive com o consentimento do órgão. Documentos obtidos pelo Metrópoles revelam que a situação delas está como “ativa”, com a Autorização de Funcionamento de Empresas.
A Anvisa foi procurada para comentar o caso, mas não havia retornado os contatos até a última atualização desta matéria.
As empresas
A reportagem também procurou as companhias citadas, que confirmaram o funcionamento normal, apesar das investigações da Anvisa e do MPSP. Única delas sediada em Brasília, a 3D Sint aparentava estar com as portas trancadas, apresentando inclusive uma grade de ferro para reforço de segurança.
A equipe do Metrópoles esteve no endereço, localizado no Trecho 5 do Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), para se certificar sobre a atividade da firma investigada. Apesar das portas fechadas, uma secretária atendeu a ligação feita à empresa e confirmou os trabalhos no local.
Outra companhia apontada como distribuidora das peças clandestinas, a Bioconect funciona em Campinas (SP) e também mantém as atividades normalmente. A entidade tem divulgado nas redes sociais, inclusive, próteses de titânio que estão disponíveis para cotação comercial. Na postagem, ela exibe “malhas customizadas”, indicadas para procedimentos de “regenerações ósseas alveolares maxilares e mandibulares”.
A Critéria – Indústria e Comércio de Produtos Medicinais tem um sistema de telemarketing para possíveis clientes. Pelo 0800, comunicou estar funcionando normalmente nos últimos dias. A empresa, com sede em São Carlos (SP), foi fundada em 2006 por “especialistas das áreas médica, química e de engenharia”.
Apesar de não manter um perfil nas redes sociais, a WMA Micro Usinagem Médica Odontológica possui um número de telefone que atende os possíveis clientes. Na segunda (7/5), a telefonista confirmou à reportagem a normalidade das atividades da empresa de produtos hospitalares.
Mercado negro
A operação na unidade do Senai de Joinville para apurar a conduta de Edson Costa Santos foi deflagrada em 4 de julho de 2017, após a Anvisa receber denúncias anônimas de que as próteses impressas com tecnologia 3D do Senai abasteciam o mercado negro à revelia da entidade.
Os produtos eram repassados para empresas do ramo e, posteriormente, usados em pacientes com registros adulterados, com o objetivo de despistar a fiscalização. Com isso, as companhias ofereciam o material a médicos.
Os profissionais, por sua vez, solicitavam às vítimas – os pacientes – que ingressassem na Justiça a fim de obrigar planos de saúde a custear as operações, consideradas emergenciais. Por conta das decisões judiciais, as operadoras eram forçadas a adquirir os produtos, mas acabavam comprando os clandestinos por preços dos legalizados no mercado formal.
Em outro detalhe das investigações, descobriu-se que a fabricação de próteses destinadas à cirurgia de reconstrução crânio-bucomaxilofacial era desenvolvida no mesmo local onde são feitos itens industriais e mecânicos, como peças de caminhões, o que acrescenta um potencial risco de contaminação aos supostos materiais de saúde.
Vítimas não foram informadas
Um empresário de Macapá (AP), que teve parte do rosto deformado após levar um tiro em assalto à mão armada, precisou aguardar pelo menos 10 meses desde o incidente até conseguir realizar a cirurgia. Sem saber sobre a origem duvidosa do produto implantado no maxilar, o rapaz comemora vitória em um caso no qual a maioria das pessoas perde a vida. O custo total do procedimento chegou a R$ 493 mil, pagos depois de muito custo pela operadora.
O plano de saúde não queria custear e me oferecia alternativas, como próteses provisórias, com duração de cinco anos. Meu médico me orientou pela definitiva“
De acordo com o autônomo, um médico foi à capital amapaense especialmente para acompanhar a cirurgia ao lado do, segundo ele, engenheiro da peça. “O material chegou no Brasil e só foi desembalado na sala da operação. Guardo todos os documentos sobre o caso, que foi um dos mais difíceis da minha vida. Hoje, ninguém diz que tenho uma prótese”, continuou.
O paciente lembra que, conforme o médico disse à época, poucas empresas do Brasil tinham a tecnologia para customizar a peça. Após o empreendedor conseguir na Justiça que o plano arcasse com os custos, pelo menos três companhias teriam disputado o pedido da operadora. “Hoje, um ano após a cirurgia, tenho acompanhamento do meu médico. Não houve procura de pessoas da empresa, nem mesmo da Anvisa. Percebi que tudo tinha dado certo”, acredita.
Apesar de mencionada no relatório a necessidade de se monitorar os nove pacientes detectados com próteses clandestinas, as vítimas não têm conhecimento da antecedência dos produtos implantados nos próprios corpos. À reportagem, o macapaense afirmou: a informação dada a ele foi de que o material veio da Ucrânia e foi fabricado nos Estados Unidos.
O outro lado
Procurada pela reportagem, a Anvisa preferiu não se manifestar acerca das novas denúncias, até a publicação desta matéria. Todas as empresas investigadas foram questionadas pelo Metrópoles e, da mesma forma, não se pronunciaram até a última atualização.
O cirurgião Paulo Hemerson de Moraes e o ex-diretor do Senai Edson Costa Santos não foram localizados para comentar o assunto.
Em nota, o Senai informou que “implantou uma rede de institutos de inovação, por meio da qual mantém linhas de pesquisa para tecnologias inovadoras, voltadas a materiais e processos de fabricação para diversos setores, entre os quais aeronáutica, automotivo, agronegócio, saúde, petróleo e gás, em diversos locais do país”.
Conforme sustenta o texto, “isso inclui o desenvolvimento de peças de titânio por deposição a laser, atendendo especificações técnicas de empresas clientes de seu Instituto de Inovação em Joinville. O preceito básico é o desenvolvimento de pesquisa, para validação de conceitos, sempre respeitando as normas técnicas e a legislação”.
A nota diz ainda que “a instituição desaprova qualquer desvio de finalidade de protótipos desenvolvidos exclusivamente para fins de pesquisa científica e tecnológica e que não sigam os ditames legais. A possibilidade de desvio dessa finalidade foi objeto de sindicância interna que resultou em ajustes na estrutura diretiva da unidade de pesquisa e no aperfeiçoamento das normas, procedimentos e controles no desenvolvimento de pesquisa e protótipos”.
De acordo com o Senai, “o funcionamento do centro de pesquisa, que atualmente não possui projetos na área de saúde, se dá dentro de critérios técnicos e legais, respeitando as diretrizes da Anvisa”.
A reportagem entrou em contato também com o Ministério Público do Estado de São Paulo, que recebeu o documento com as denúncias feitas pela agência reguladora há seis meses. Por nota, o órgão disse que “o Núcleo do Gaeco/Campinas [responsável pelo caso] não comenta investigações em andamento e que tramitam em sigilo”.
Colaborou Carlos Carone
Fonte: Metrópoles
Foto: Reprodução/Facebook