Miriam Santos – “A mãe que doa seu leite ensina ao filho o que é solidariedade”
Pediatra responsável pela coordenação dos Bancos de Leite do DF fala sobre a importância da doação de leite humano. Só no ano passado, dez mil recém-nascidos foram beneficiados com a oferta solidária de seis mil mulheres
Médica pediátrica, Miriam Santos carrega há décadas o dever de salvar pequenas vidas, principalmente após complicações no parto. Agora, à frente da Coordenação de Políticas de Aleitamento Materno do Distrito Federal, seu foco são os recém-nascidos, que por algum motivo de saúde, estão internados na rede pública de saúde. Como as mães deles, em geral, não têm leite suficiente para amamentá-los, os pequenos precisam de doações de outras mulheres para se recuperarem e sair da internação hospitalar.
“É uma luta diária deles pela sobrevivência e o leite humano é fundamental nesse processo”, explica a médica. Em entrevista à Agência Brasília, Miriam destaca a importância da amamentação com leite humano não apenas no processo de recuperação de prematuros, como para o futuro da criança. “Quanto maior for o aleitamento, maior será a saúde das nossas crianças e menor o risco delas, na idade adulta, desenvolver doenças crônicas como hipertensão, diabetes e colesterol alto”, explica.
Ela conta que, no ano passado, 10 mil recém-nascidos internados na rede pública foram beneficiados com doações de leite materno. “Graças a essas doadoras, que se empenham muito, em média, conseguimos arrecadar 1,5 mil litros de leite por mês. É a quantia que necessitamos para suprir a demanda”, disse. A médica aproveita e faz um apelo às mulheres que estão amamentando. “A mãe que doa seu leite está ensinando para o seu filho o primeiro ato de solidariedade que ele pode ter. Dividir com outros o alimento dele, que sobra.”
Qual é o seu trabalho à frente dos Bancos de Leite?
Coordenamos as políticas de aleitamento materno do Distrito Federal. Seja na atenção primária, secundária ou terciária. Treinamos os profissionais e fazemos a sensibilização de mães doadoras com campanhas. Tudo para atingir o objetivo de melhorar o índice de aleitamento materno do DF. Quanto maior for o aleitamento, maior será a saúde das nossas crianças e menor o risco delas na idade adulta de desenvolver doenças crônicas como hipertensão, diabetes, colesterol alto. Estamos contribuindo para que no futuro nosso sistema de saúde seja menos sobrecarregado.
Qual é a média de aleitamento materno no DF?
Temos dois índices. Um trabalho grande e que, na realidade, vem desde a fundação do DF. Há uma preocupação com a saúde da mãe e da criança. O primeiro alojamento conjunto que a gente tem notícia no Brasil foi feito pelo doutor Ernesto Silva, que foi secretário de Saúde na época da fundação de Brasília. É o tipo de alojamento em que a criança nasce e já é colocada ao lado da mãe. Até as décadas de 1960, 1970, e, em algumas instituições privadas, isto acontecia. Existia um local chamado berçário, em que crianças em situação normal iam para lá e eram separadas das mães. E, em Brasília, existia essa preocupação de que criança normal tinha de ficar com a mãe para serem amamentadas. A última pesquisa que fizemos mostra que cerca de 60% das crianças com menos de 6 meses são exclusivamente alimentadas com leite materno. Quando olhamos crianças com mais de um ano, mantemos os índices de 58%, 59% de crianças, que continuam sendo amamentadas apesar de comer comida de sal e frutas.
O leite materno deve ser exclusivo até os seis meses. A partir daí, o bebê deve receber outros alimentos, como frutas e comidas de sal, além de continuar mamando. Até o final do primeiro ano, ele é o principal alimento do bebê. No segundo ano de vida, o leite materno ainda é muito importante. A vitamina C que o bebê precisa durante o dia, pode vir do leite materno sem necessidade de suplementação.
O que faz do leite materno um alimento tão completo?
Quando o bebê suja a mão e leva bactérias para a boca, a saliva dele passa essa mensagem para a mama da mãe. “Tive contato com uma bactéria! Tive contato com um vírus!”. Aí, a mamãe começa a produzir fatores de defesa para proteger o bebê. É um alimento inteligente. Nessa época de seca e fria, o leite humano consegue suprir toda a quantidade de água que a criança precisa e ainda garante as defesas necessárias para o período.
Como estão os índices de aleitamento materno no DF?
Brasília é uma cidade com bons índices. A gente faz todas as orientações desde o pré-natal para a mãe saber dessa importância, passando pelas maternidades e chegando ao acompanhamento ambulatorial. Estimulamos a amamentação, porque quanto mais mulheres amamentarem, maior será o volume de leite que vamos coletar. Para ser doadora de leite materno, é importante a mãe estar amamentando seu bebê. A maioria das mulheres faz essa doação de 3 a 4 meses porque, depois, a produção delas se adequa à necessidade do bebê e diminui. Entretanto, há casos de mulheres que continuam doando pelo período de um ano, dois anos. Enquanto o filho se alimenta, ela é doadora.
O leite é o mesmo em todo o período de amamentação? Ou perde qualidade com o passar do tempo?
Na realidade, temos diferentes leites maternos. Durante o dia, uma mesma mulher vai produzir diferentes tipos de leite. Quando ela acorda e toma café da manhã, produz um tipo de leite. À tarde, depois do almoço, é outro. E assim sucessivamente. Todo o material que chega ao banco de leite passa por um rigoroso processo de seleção, classificação, pasteurização e controle de qualidade. Para cada pote, vamos saber quanto temos de calorias, de cálcio, de proteínas, teor de imunidade…isto ajuda para distribuirmos adequadamente para cada bebê, de acordo com suas necessidades.
Então, cada coleta é examinada e classificada individualmente?
Sim. Se uma mãe doar quatro a cinco frascos de leite, cada frasco será classificado e distribuído de acordo com as características identificadas em cada pote.
O volume de doações no DF é suficiente?
A gente tem uma meta de coleta de, no mínimo 1,5 mil litros de leite humano por mês, para que possamos atender à demanda dos bebês internados nas redes de saúde pública e privada. Quando a gente fala em coleta de leite materno no DF, levamos em conta todo o sistema. O peso do sistema público é muito maior até pela demanda da rede. Mas todas as crianças, estejam no sistema público ou suplementar, são cidadãos e merecem ter o melhor. No DF, temos leis que definem isto. Qualquer maternidade, pública ou privada, deve ter condições de oferecer leite humano para os bebês internados. Até agosto, vamos chegar a 100% de atendimento com banco de leite ou postos de coleta para ofertar leite humano a bebês internados. Seremos a única cidade do mundo com essa característica.
No sistema privado, temos três bancos de leite. No público, são 12 bancos e dois postos de coleta. A supervisão é da Secretaria de Saúde. Treinamos os profissionais e a Vigilância Sanitária avalia as condições. Ter esse suporte é importante. Muitas mulheres, que optam por uma unidade privada, precisam de assistência para a amamentação. A amamentação é bom para elas e o filho.
É importante para a mulher também?
Sim. É um momento que traz prazer para a maioria. No começo é difícil. Nem sempre é um mar de rosas. Ser mãe e amamentar tem de ser prazeroso. Não pode sentir dor. Se está sentindo dor, deve procurar ajuda para verificar o que está errado. Não é para sentir dor, a natureza não fez desta forma. Às vezes, as pessoas não sabem que existem Bancos de Leites, que, na verdade, são casas de apoio à amamentação. Todas as mulheres que desejam amamentar podem procurar um Banco de Leite ou um posto de coleta e terá ajuda. Na maioria das vezes, essa questão de a mãe achar que o leite é pouco, é fraco, que não é suficiente para alimentar a criança, na realidade é um ajuste de posição, de manejo, que precisa ser feito. Na maioria das vezes, o banco de leite consegue resolver o problema de amamentação e a mãe acaba se tornando uma doadora de leite materno. Infelizmente, muita gente não conhece esse trabalho.
Qualquer mulher que está amamentando pode ser doadora?
Potencialmente, sim. Todas podem. E é importante desmistificar alguns equívocos. Quanto mais a mulher amamenta, mais ela produz leite. Logo depois do parto, a mama se organiza para oferecer mais. Depois, ela produz conforme for demandada. Tipo uma fábrica. Se alguém demanda, ela produz. Ou seja, quando mais ela retira, mais ela terá. Outra coisa importante é que a mãe pode encher um pote de doação, de 300 ml, por semana. “Às vezes, a angústia que elas têm é de não dar conta de encher tudo no mesmo dia. E não precisa. Pode fazer isto ao longo de sete dias, sem problema. Não compromete em nada a qualidade do leite. Sabe o que é mais bonito nesse processo? A mãe que doa seu leite está ensinando ao filho o primeiro ato de solidariedade que ele pode ter. Dividir com outros o alimento dele, que sobra. Porque um potinho desses de 300 ml pode alimentar até 10 bebês. Não importa a quantidade da doação, se alimentar um bebê, já cumpriu a missão.
O que é preciso para ser doadora?
Todas as mulheres precisam dos exames do pré-natal. Se o bebê dela for maior, a gente repete os exames a cada seis meses, em média. São exames para sífilis, hepatite e Aids, além de outros. É um controle sanitário que precisamos ter para dar segurança à mãe receptora. A mãe que recebe pode ter essa segurança. O leite que ela pega no Banco de Leite tem procedência e passou por um controle de qualidade rigoroso.
Qual o potencial de doação de uma mãe que está amamentando?
Temos doadoras que enchem 10 a 15 frascos, por semana, mas temos quem só consiga encher um. E todas têm a mesma importância. Todas elas são valorizadas por nós. É um ato voluntário e a gente reconhece que elas contribuem para que os bebês internados possam ir para casa com saúde. A solidariedade delas movimenta a vida de muitas famílias. De pessoas que nem imaginam. No ano passado foram mais de 10 mil crianças atendidas, com quase 6 mil doadoras. Isto representa 12% das mulheres que tiveram bebês no DF. Poderíamos ter mais mulheres contribuindo. A gente acredita que seja por falta de informação.
Quais os cuidados que a doadora precisa ter?
O leite humano é considerado pela Organização Mundial de Saúde o alimento padrão ouro para a saúde da criança. É o melhor alimento que ela pode receber. Quando a gente fala isso é aquele leite que sai direto do peito da mãe para o bebê. A partir do momento que colocamos um pote no meio, precisamos lidar com esse alimento de forma segura. É necessário cuidado na manipulação para não desperdiçá-lo. A mãe precisa colocar algo para proteger o cabelo, touca ou lenço, além de usar máscara ou fralda, para cobrir boca e nariz. O importante é evitar que uma gotícula ou um cílio caiam no pote. É preciso lavar mãos e braços até a altura do cotovelo. E passar água no peito e fazer massagem até a extração do leite. O primeiro esguicho é desprezado. Ela colhe o seguinte. Depois, é importante colocar no congelador para não perder todo o leite. Geralmente, a gente fornece os potes para coleta, basta solicitar.
Qual o percentual de descarte de leite doado?
Descartamos pouco. A maioria das mulheres tem compromisso com a causa. E isto é bonito. Dá trabalho, não é algo fácil. Tem de ter dedicação. Em julho, mês de férias escolares, muitas das nossas doadoras, mães de outras crianças, não têm tempo para o cuidado com a doação. Então, nossas coletas caem um pouco. A gente vê que essas doações são um ato de solidariedade, para ajudar outra mulher e uma criança, que precisa demais do leite para sobreviver.
Uma mãe pode amamentar no peito o filho de outra mãe?
Na realidade, a gente não orienta essa prática, que chamamos de amamentação cruzada. Existem algumas patologias em que a mãe tem doença e pode amamentar o filho dela, mas não o de outra mãe. A gente aconselha a procura pelo banco de leite. As pessoas até brincam dizendo que o banco de leite hoje é a mãe de leite do século 21. No banco de leite temos o rigoroso processo de seleção e classificação do tipo de leite para oferecer ao bebê certo, sempre com objetivo específico.
Além de ir ao banco de leite e postos de coleta, onde as mães podem buscar informações sobre a doação?
Temos o site www.amamentabrasilia.saude.df.gov.br com informações sobre o tema. Se as mulheres buscarem nas redes sociais, Facebook e Instagram, vai encontrar grupos de mãe doadoras. É legal trocar experiências e conhecer histórias de quem já está doando. Outra coisa importante é que as mães têm a facilidade de ligar para o número 160, opção 4, para esclarecer as dúvidas e pedir a coleta domiciliar.
Quando começamos com o Banco de Leite no DF, em 1978, as mães precisavam ir ao ponto de coleta. Com o tempo, a gente viu que as coisas eram difíceis porque ela tinha um bebê para cuidar. Para ir ao hospital doar era difícil. Organizamos as rotas domiciliares para coleta. Em 1979, fizemos parceria com o Corpo de Bombeiros. Em 2010, passamos a cobrir todo o DF. Temos 20 duplas de militares, que cobrem 12 bancos de leite. Eles arrecadam 90% do volume doado.
Qual seu objetivo no trabalho à frente da coordenação das políticas de aleitamento materno no DF?
Tenho a ambição de a gente conseguir aumentar o volume coletado. Hoje, o que coletamos, cerca de 1,5 mil litros por mês, apenas supre a necessidade dos bebês internados. Mesmo assim precisamos administrar bem para não faltar. Mas gostaríamos de coletar o dobro, três mil litros de leite materno, para oferecer a qualquer família que precisa alimentar um bebê.
Fonte: Agência Brasília – Foto: Acácio Pinheiro/Agência Brasília