O compromisso da imprensa e a responsabilidade de cada brasileiro nas eleições de 2018

 

Formada em Direito e especializada em Direito da Comunicação, Mídia e Tecnologia, Clara Iglesias Keller é doutoranda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, ela vive em Berlim, onde integra o quadro de pesquisadores visitantes do Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society.

Para a pesquisadora Clara Iglesias Keller, é importante que o eleitor pense no seu ‘poder de mídia’ para evitar a divulgação de informação falsa ou ilegal

Na Alemanha, a cientista brasileira estuda alternativas de políticas públicas voltadas para os serviços prestados por meio da infraestrutura de internet. Nesta entrevista, ela fala sobre um tema pertinente aos seus estudos: os usos que a imprensa e os cidadãos podem fazer das tecnologias e da rede nas eleições de 2018.

“As pessoas deixaram de ser apenas consumidoras de conteúdo, tendo a possibilidade de também de produzi-lo e divulgá-lo em ampla escala e com baixo custo”, afirma. Confira a conversa.

O Brasil caminha para uma das mais complicadas eleições das últimas décadas. Uma grave crise econômica e uma conjuntura política conflituosa estão no cerne do imbróglio. Em uma eleição como esta, qual deve ser o papel da imprensa?

A imprensa tem um papel fundamental em qualquer regime democrático, que ganha notoriedade nos períodos eleitorais, mas não se resume a eles. É o papel de informar a cidadania de forma livre, plural e transparente, instrumentalizando o debate público necessário ao exercício constante da participação democrática. A própria legislação eleitoral reconhece um papel diferenciado e estratégico da imprensa nos momentos deliberativos, prevendo regras que devem ser observadas pelos veículos de comunicação durante o período de eleições, principalmente relacionadas à veiculação de propaganda eleitoral e do horário eleitoral gratuito, como na Lei 9.504/97. O contexto político e econômico atual, em uma corrida presidencial mais diversa do que as dos últimos pleitos, aumenta essa relevância quantitativa e qualitativamente, exigindo mais informação e ainda mais esforço de verificação dos fatos e fontes.

De que forma a mídia tradicional brasileira, como o rádio, o jornal e a TV, pode utilizar as tecnologias de comunicação para garantir transparência em pleitos democráticos, como estas eleições?

Atualmente, fala-se muito nas contingências que as tecnologias digitais trouxeram para o debate público. A divulgação em massa de notícias falsas, a comercialização de dados privados e práticas de vigilância, por exemplo, são assuntos discutidos com frequência. No entanto, é importante lembrar que as mesmas tecnologias também contribuíram (e contribuem) muito para o aperfeiçoamento das instituições democráticas. Além da ampliação do acesso e da divulgação de informação, assistimos à difusão de plataformas voltadas à transparência e responsabilidade governamental, otimização da prestação de serviços públicos e até para fins relacionados à segurança pública. Esses mecanismos, muitas vezes instituídos pelos governos federal e locais, estão ao dispor da imprensa e de qualquer cidadão em busca de informação e podem auxiliar na verificação de informações durante o período eleitoral.

Como você avalia o projeto brasileiro Comprova, que reúne 24 veículos de comunicação em torno do objetivo de descobrir e investigar informações enganosas e deliberadamente falsas durante a campanha presidencial de 2018?

Não conheço a atuação do projeto detalhadamente, mas esse tipo de investigação é bem vindo no contexto atual. A manipulação da informação não é uma novidade do mundo digital. Os sofistas gregos já eram acusados de fazer dela uma arte do discurso, por exemplo, e os arcabouços regulatórios sobre a propriedade dos meios de comunicação expressam também a preocupação em garantir um debate público minimamente imparcial. No entanto, é verdade que hoje a possibilidade de manipulação em massa dos fatos através da tecnologia dá nova proporção aos efeitos da distorção. A proposta do Comprova descrita por vocês é um tipo de ação que contribui para que o resultado das eleições reflita o que ecoa de forma legítima, e não artificial. Independente disso, é importante notar que o combate à disseminação de notícias falsas precisa endereçar questões de natureza técnica, social e política, sendo um fenômeno que exige reflexões e pesquisas acadêmicas multidisciplinares e mais abrangentes.

Quais outros caminhos possíveis para o combate às fake news – ou desinformação – entre veículos menores, que estão fora do projeto?

O período de eleições aumenta o esforço quantitativo e qualitativo da imprensa na obtenção e tratamento das informações, exigindo ainda mais da perícia que os profissionais do jornalismo empregam como rotina nas suas atividades. Informar bem a população através de um exercício legítimo da liberdade de expressão já é parte fundamental do combate ao que se chama de “desinformação”. O fato dos veículos menores não estarem necessariamente organizados não os deixa desamparados. Existem hoje alguns projetos independentes dedicados a esse tipo de verificação e que disponibilizam os resultados das apurações para toda a coletividade. O uso dessas ferramentas pode e deve ser somado aos cuidados usuais.

Hoje se fala muito que os cidadãos têm um poder especial no âmbito das comunicações e das tecnologias: o poder de mídia. De que forma cada brasileiro com essa prerrogativa pode usá-la para auxiliar a coletividade a decidir seu voto nestas eleições?

As possibilidades de participação e divulgação de conteúdo online são diversas; cada cidadão pode aproveitá-las na medida em que desejar. Esse é um dos mais celebrados avanços democráticos que as tecnologias digitais permitiram: as pessoas deixaram de ser apenas consumidoras de conteúdo, tendo a possibilidade de também de produzi-lo e divulgá-lo em ampla escala e com baixo custo. É possível participar mais ou menos ativamente, seja divulgando depoimentos pessoais, informações próprias ou de terceiros, memes, resultados de pesquisas, o que for. Para o bem ou para o mal, a internet nos aproximou para a troca com o outro, e isso pode ser aproveitado para fomentar o debate eleitoral. É importante, ainda, que cada um pense no seu “poder de mídia” de forma ética e responsável, tomando os cuidados necessários para evitar a divulgação de informação falsa ou até ilegal – lembrando que esta última pode, inclusive, gerar responsabilização civil.

Notícias falsas são um tema recorrente quando se fala em política, principalmente depois vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton na disputa pela Presidência dos Estados Unidos, há quase dois anos. Do ponto de vista da tecnologia, o que se quer dizer quando se fala que fake news elegeram ou derrubaram candidatos a um dos cargos mais importantes da política global?

Como dito acima, a manipulação do discurso é contingência natural da liberdade de expressão, sendo novidade, hoje, a manipulação em massa através da tecnologia. Sob esta perspectiva, ela pode acontecer de formas diversas. As mais comuns são, primeiro, o uso de algoritmos pelas plataformas de conteúdo para manter os usuários engajados, podendo inseri-los em dinâmicas de reforço que priorizam conteúdos editoriais similares (facilitando a corroboração de opiniões preconcebidas). Outra forma são os robôs capazes de simular usuários humanos (dando escala a propagandas disseminadas em redes sociais) ou de gerar automaticamente relatórios, notícias, vídeos ou áudios inverídicos aparentemente autênticos. Podem ser também citadas as ferramentas de marketing alimentadas por dados pessoais individualmente identificáveis, que tornam o conteúdo recebido cada vez mais específico e capaz de influenciar opiniões e comportamentos.

Apesar de já existirem alguns trabalhos pontuais, os efeitos concretos dessas tecnologias nos processos deliberativos ainda não foram explorados o suficiente pelas pesquisas empíricas. Ainda não sabemos, ao certo, o quão determinante para o resultado final dos pleitos é essa influência. Certamente não se trata de uma relação direta quantificável, já que entre o acesso a uma notícia falsa e o voto há um caminho subjetivo de formação da vontade do indivíduo que envolve diferentes fatores.

Atualmente você vive em Berlim, onde desenvolve pesquisas no Alexander von Humboldt Institute for Internet and Society. Como tem sido este trabalho de investigação?

A pesquisa conduzida no âmbito do HIIG tem foco na formulação de políticas públicas voltadas para os serviços prestados através da infraestrutura de internet – comumente referidos como serviços “em OTT”, abreviatura da expressão anglicana “over the top”. O estudo envolve aspectos multidisciplinares, como as características técnicas da rede, as questões de segurança que precisam ser endereçadas pelo direito e a importância do estímulo à inovação para o desenvolvimento do país. Um debate essencialmente global, dado que internet é essencialmente transnacional, que está na agenda regulatória da maior parte das nações e de alguns organismos internacionais. Nesse sentido, a experiência tem sido enriquecedora. Além de estar em contato com pesquisadores de renome da área de governança de internet, são essenciais para o resultado final do trabalho a proximidade com as experiências europeias mais recentes neste campo e a inserção num ambiente acadêmico que provê a perspectiva multidisciplinar necessária ao seu desenvolvimento.

Em que setores o próximo governante eleito para a Presidência da República do Brasil deve investir para que se possa falar em uma efetiva democratização da comunicação no país?

Há muitos debates que se relacionam com o tema que ainda não se esgotaram. Cito aqui dois exemplos importantes: as políticas de inclusão digital da população e a permanência da prática referida como “coronelismo eletrônico”, onde outorgas de radiodifusão são concedidas para políticos eleitos, em expressa contradição com o que prevê a Constituição Federal. Sobre isso, há inclusive duas ações ainda pendentes no Supremo Tribunal Federal que questionam a prática, as ADPFs 246 e 379. De forma geral, pela dependência de infraestrutura, as políticas públicas direcionadas à comunicação sempre foram desafiadas pelo avanço tecnológico – mais veloz que o processo legislativo e até a produção regulatória, em muitos casos. Além disso, em um mundo cada vez mais conectado, as relações sociais e econômicas ficam cada vez mais complexas. Esse contexto exige dos governos a abertura para informar os processos decisórios de forma mais dinâmica e multidisciplinar, atenta às características tecnológicas desses serviços. É preciso ter em vista que a forma como se conduz a regulação de inovações tecnológicas se relaciona essencialmente com o desenvolvimento do país e com a sua posição econômica e política no cenário internacional.

*Entrevista concedida aos pesquisadores:

Enio Moraes Júnior – jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA / USP) e membro do Grupo de Pesquisas Jornalismo Popular e Alternativo (Alterjor) da USP (eniomoraesj@gmail.com).

Maria Elisabete Antonioli – doutora em Ciências da Comunicação pela ECA / USP, coordenadora do curso de graduação em Jornalismo e professora colaboradora do Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (PPGCOM) da ESPM-SP (mantonioli@espm.br).

 

Fonte: Portal Imprensa

Por Enio Moraes Júnior / Maria Elisabete Antonioli

Foto: Divulgação

 

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