O silêncio da Casa do Cantador

Com falta de recursos e descaso do governo, espaço cultural na Ceilândia
se encontra em inatividade e é alvo de críticas de artistas e frequentadores

A Casa do Cantador é um centro cultural localizado na Ceilândia que, apesar de inicialmente ter o intuito de promover a música nordestina, passou a ser multicultural e acolher eventos de diversos gêneros. Entretanto, o espaço que é tão importante para a cidade e já sediou muitos espetáculos até o ano passado, agora vive às moscas. É um reflexo nítido do descaso do governo com a cultura no Distrito Federal. O local, que já foi palco para artistas como Luiz Gonzaga e Zeca Baleiro, está realizando apenas atividades feitas através da contribuição dos moradores, como aulas de música para crianças, sem financiamento.

Esta que é a única obra de Oscar Niemeyer no Distrito Federal localizada fora do Plano Piloto, hoje está sem verba para a realização de eventos e reformas. Portanto, para realizar as poucas atividades que ainda acontecem, o local depende de iniciativas da comunidade, como professores voluntários e doadores independentes. “A Casa do Cantador parada é um retrocesso. Uma perda de energia, um desperdício. É uma mostra da ineficiência desse governo, porque ela poderia estar pulsante”, disse João Santana, repentista nato de Brasília.

O acontecimento mais recente que refletiu esse descuido foi a eliminação da figura do ex-diretor, Francisco de Assis, conhecido como Neném. Ele ocupou o posto por 9 anos e, sem muitas explicações ou aviso, foi retirado por meio de um decreto publicado no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) no dia 10 de maio.  Com a ausência de nova nomeação oficial para o cargo diretivo, o local está com perspectiva ainda menor.

“O antigo gestor foi uma pessoa que articulou muitos contatos e, por isso, houve muitos eventos realizados tanto via emendas parlamentares, quanto projetos custeados pelo Fundo de Apoio à Cultura e pela Lei de Incentivo à Cultura. Tivemos, assim, um período fértil de uns 10 anos para cá, mas agora teremos, possivelmente, um momento de desafio. Vamos ver o que vai acontecer”, lamentou João Santana.

“Estamos sentindo falta, pois não há projetos para a Casa do Cantador.Não estamos tocando nem de graça”. Vital do Bambolê

Durante o ano passado, a casa ainda contava com eventos como: Tributo a Luiz Gonzaga, o Rei do Baião; Rock CEI; Caldeirão Cultura; Domingão Vesperal; Tocando Cinema na Casa do Cantador; Sexta do Repente; Sabadão do Forró; Lazer das Quebradas e muitos outros. Ao todo, o local apresentou 61 espetáculos no ano de 2018, dos quais 47 foram custeados com verba pública. Até junho do ano anterior, o espaço havia realizado 26 das apresentações totais daquele ano. Em junho de 2019, a casa completaria seis meses de ócio, não fosse a realização de um único evento no dia 11, Desafio do Repente.

De acordo com a Secretaria de Estado da Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal (Secec), órgão responsável pela casa, o Desafio do Repente é um evento sem custos e, até então, o único planejado para o local este ano. A realização de um evento não muda o fato de que Casa do Cantador está abandonada.

O local agora sobrevive com a presença de alguns poucos funcionários e quem leva energia até lá são os músicos. Apesar de se mostrarem desgostosos com a situação atual, enxergam a importância de estarem presentes e tentam buscar maneiras para que o local não fique totalmente parado. “Tem muitas pessoas competentes que poderiam dar aula aqui para a comunidade. Um músico poderia dar aula com o incentivo, porque nós também precisamos de dinheiro. Portanto, precisamos de uma colaboração governamental para podermos fomentar a nossa cultura”, constatou o sanfoneiro Vital do Bambolê, 62 anos.

Além disso, para artistas como Vital, que vivem da música, é lamentável ver um centro com tanto potencial totalmente parado. “Estamos sentindo falta, pois ainda não há projetos para a Casa do Cantador. Não estamos nem tocando de graça”.

A Secec afirmou ter planos que visam a revitalização do local, com investimentos estimados em R$ 470 mil, mas só a partir de 2020.  A secretaria, que deveria cobrir todas as despesas, está realizando o cumprimento apenas das necessidades extremamente básicas do local, como as tarifas de água, luz e limpeza. Apesar dos projetos futuros, alguns artistas se mostram descrentes às mudanças devido ao desleixo até o atual momento. “O governo deveria tocar essa casa, mas não é isso que acontece, pois ela já está fechada, assim como todas as outras”, diz Japão, Viela 17 rapper de 48 anos nascido na Ceilândia.

Essa desvalorização e desrespeito não são apenas com os artistas, mas sim com a cultura. Afinal, a Casa do Cantador é um patrimônio público e cultural, que está às sombras do governo. “Trabalho com isso desde 1982, quando os militares estavam no poder. Sinto que tudo está regredindo como naquela época e questiono se a luta valeu a pena”, confessa o rapper.

O lugar conta com um histórico vasto de artistas que passaram por ali, desde poetas repentistas vindos do Nordeste, até dançarinos do jogo “Just Dance”. Cada um que passou pela casa tem afeto e muita história boa para contar. O repentista João Santana lembra de seus momentos ali. “Depois que comecei a fazer parte do repente, passei a participar dos festivais da Casa do Cantador. Com isso, já tenho oito primeiros lugares consecutivos em festivais”, relatou.

O impacto da cultura na vida da comunidade

Japão, Viela 17, Rapper de 48 anos nascido na Ceilândia

De acordo com Japão, a Casa do Cantador era o único centro cultural aberto na Ceilândia, mas agora está fechando também. Sendo assim, isso não afeta somente os artistas, mas a comunidade toda, principalmente os jovens que usavam aquele espaço para entretenimento e arte. “Os espaços culturais abertos que restaram são as delegacias e as bocas de fumo, pois os jovens sem cultura vão para o mundo do crime”, denunciou.

Para o ex-diretor, Neném, a Ceilândia é uma cidade forte e autossuficiente, mas por outro lado, tem uma vulnerabilidade muito grande. “Os nossos jovens estão aí numa ociosidade. E eu, como educador, não vejo outro instrumento tão forte quanto a cultura para transformar uma pessoa.  Um jovem prefere ser reconhecido por ser músico do que por ser um bandido valentão”, destacou.

A casa tem um papel social importante e deveria suprir a necessidade de consumo cultural não só em jovens, mas em toda a comunidade. É um espaço de divertimento para todas as idades. “Com a Casa do Cantador funcionando a gente colocava as pessoas para dançar. Inclusive o pessoal da terceira idade, que não tinha espaço para se divertir, afinal aqui todos tinham um lugar gratuito para se distrair”, conclui Vital.

A ideia do local, quando está ativo, é receber a todos. Sem distinção de estilos musicais, conta com o público não só da Ceilândia, mas de todo o DF. A comunidade tem acesso gratuito a todos os eventos que são feitos lá. Além disso, eles são divulgados em várias regiões administrativas com apoio da rádio comunitária. É possível, assim, convidar pessoas de diversos lugares com maior facilidade, mas apenas quando os eventos estão acontecendo.

Além de todos os eventos musicais, o local tem um espaço que deveria servir como cordelteca e tinha o objetivo de possuir livros para a população. Porém, o acervo de livros que ajudaria no lazer e até mesmo nos estudos de quem quer que precisasse, também está sem cuidados e com os materiais antigos e empoeirados. Desfalcado de cadeiras e mesas, o espaço está sempre vazio.

Mudança de gestão e o futuro da Casa do Cantador

Sem cuidados, os livros da Casa são antigos e estão descuidados

Durante 9 anos, Francisco de Assis era quem movia a casa. Entretanto, sem motivo ou explicação contundente, foi rebaixado e, logo depois, exonerado do cargo vinculado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF (Secec). Mais conhecido como Neném, o ex-diretor da Casa do Cantador fez de tudo para que o centro cultural permanecesse ativo, com muita música e cultura, como deveria ser.

No dia 9 de maio, saiu no DODF o decreto que rebaixou Neném para o cargo de gerente da casa. Contudo, no dia seguinte, saiu um novo decreto, tornando sem efeito a sua gerência e nomeando outro servidor para o cargo. Com isso, o local está com uma nova gerência, mas permanece sem eventos, sem direção e vazia.

Apesar da gestão de Francisco de Assis ter valido até o dia 10 de maio, quatro dias antes o DODF publicou a nomeação de Manoel de Sousa Rodrigues para o cargo de novo diretor. Entretanto, o Diário Oficial do dia 10 oficializou a exoneração de Neném e tornou Manoel gerente do centro cultural. Assim, o local não tem um diretor oficial, mas até o atual momento é ele quem assume a responsabilidade.

De acordo com a Subsecretaria do Patrimônio Cultural da Secec, todos os espaços culturais vinculados a eles tiveram os cargos alterados para gerência. “A nomeação do novo gerente deveu-se a alinhamento com as diretrizes do novo governo”, afirmou o subsecretário Cristian Brayner, em entrevista.

Acreditavam os artistas que, até o segundo semestre deste ano, poderia haver novos projetos para o local. Assim, não só as atividades capacitativas aconteceriam durante a semana, mas também os eventos de lazer, como o Sabadão do Forró. Porém, dada a situação atual, espera-se que, pelo menos em 2020, os projetos renasçam juntamente com a revitalização.

Esse abandono da casa é um exemplo da desvalorização da cultura e do trabalho dos artistas. Para Japão essa situação é um enforcamento da cultura, causado pela descrença nos jovens como protagonistas.

Manifestações pela cultura

A comunidade cultural entrou em polvorosa no dia 15 de maio quando o GDF anunciou o cancelamento de R$ 25 milhões de investimento no principal edital do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Essa suspensão geraria a extinção de quase 42 mil empregos providos direta ou indiretamente pelo fundo.

A comunidade artística manifestou contra o corte dos investimentos. A ação pedindo a liberação dos recursos, contou com mais de 300 artistas por toda a capital, como por exemplo, em frente ao Teatro Nacional Cláudio Santoro e à Biblioteca Nacional de Brasília.

O repentista João Santana estava presente nas manifestações. “A suspensão desse edital é um prejuízo enorme, é ridículo. Um desrespeito com toda a classe artística, com toda a população”, afirma o repentista.

Além disso, João Santana acredita que atos como esse contribuem para que o governo se conscientize, pois, mostra que há um volume de cidadãos que exige uma articulação. “Esse movimento mostra que não aceitamos calados que destruam nossas conquistas, não vamos aceitar ser vistos como setor de trabalho inferior”.

O Fundo de Apoio à Cultura é o principal instrumento de fomento às atividades artísticas e culturais da Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Prova disso, é essa ser a maior fonte de financiamento de eventos da Casa do Cantador. Só no ano de 2018, 26 eventos da casa foram custeados pelo FAC.

Com a luta persistente dos artistas para a valorização da cultura, o Tribunal de Contas do Distrito Federal, decidiu na última terça-feira (11), anular o cancelamento do edital do FAC. Desta forma, pode- se ver a importância da luta pela cultura, afinal a batalha dos artistas e simpatizantes concretizou mais uma vitória.

João Santana, 40 anos, repentista de Brasilia

Fonte: Blog Edgar Lisboa – Fotos: Reprodução

Por Natália Bosco, Victória Côrtes, Isadora Gomes e João Paulo Silva

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