Para Edson Fachin, o século XXI deve concretizar o ideal de dignidade
As decisões proferidos em plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Ministro Edson Fachin, envolvendo demandas judiciais de direitos fundamentais do cidadão, deu origem ao artigo “Quinze votos é uma reflexão: da hermenêutica constitucional concretista à jurisprudência dos direitos fundamentais”, estudo feito a quatro mãos com a professora Christine Peter da Silva, da Universidade de Brasília (UNB).
O trabalho acadêmico fará parte de um livro que trata de conceitos teóricos de direito diante das mudanças ocorridas nos últimos anos e direitos que estão sendo assegurados por decisões do STF ao interpretar a constituição, especialmente no que ela prevê desde a edição da Emenda Constitucional n.45. O livro que está sendo coordenado pelo Presidente do STF e Conselho nacional de Justiça (CNJ) terá como título “Emenda Constitucional n.45: Quinze anos do novo Poder Judiciário” e será publicado em dezembro.
Os votos de Edson Fachin em temas como, a obrigatoriedade de as escolas, públicas e privadas promoverem a inserção de pessoas com deficiência no ensino regular; o cuidou da dignidade dos custodiados no sistema penitenciário brasileiro; a igualdade racial e respectiva política de ação afirmativa; o ensino religioso nas escolas públicas; a igualdade de gênero, os direitos de cidadania e à propriedade das comunidades quilombolas, o direito à identidade civil de pessoas transgêneros; o acerca da transparência e acesso à informação públicas, o direito à liberdade de expressão e manifestação e criminalização de práticas homofóbicas, entre outros, fazem parte deste estudo.
“O sujeito do século XXI, necessariamente, deve reconhecer-se como o sujeito da solidariedade, cuja identidade não se constrói apenas na individualidade, mas principalmente nas relações que constitui. Trata-se, pois, de coexistencialidade. E, nesse contexto, a dignidade humana passa a ser o vetor de suas experiências pessoais e culturais, e apesar de ter consciência de sua posição de indivíduo não se sustenta só nisso, pois somente como membro de uma coletividade e inserido no conceito difuso de cidadão é que ganha a força da sua liberdade e igualdade perante os demais” Edson Fachin e Christine Peter da Silva.
Segundo eles, a partir dessa compreensão, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade responsáveis foram – e continuam sendo – a base daquilo que se experimentou como modelo de Estado Constitucional dos séculos XIX e XX, o qual está a exigir, para o século XXI, a construção de uma cultura histórica cujo objetivo comum seja a concretização do ideal de dignidade.
“Não é mais o tempo para histórias de sujeitos insulares, movidos pelos seus universos pré-compreensivos limitados por suas vontades e paixões personalíssimas, considerando que contra essa postura se ergueu, há mais de dois séculos, o que se convencionou chamar de Estado de Direito”, sustentam.
Transcrevo, abaixo, parte das 41 páginas que fazem parte do estudo a que Os Divergentes teve acesso com exclusividade:
Hermenêutica Constitucional
(*) A interpretação de qualquer norma jurídica é uma atividade intelectual que tem por finalidade tornar o sentido do texto normativo uma realidade e, assim, possibilitar a incidência dos enunciados normativos, necessariamente gerais e abstratos, às situações da vida, naturalmente particulares e concretas. Assim se pode tomar, em termos gerais e elementares, a função da hermenêutica jurídica. A interpretação constitucional, mais especificamente, apresenta-se como um processo que busca o significado e a concretização da Constituição, tendo em vista não apenas a sua aplicação ou a resolução de um caso concreto, mas também a construção de um vetor hermenêutico legitimador que se constitui, em si mesmo, parâmetro para todas as demais normas do ordenamento jurídico. O professor Richard Palmer, ao tratar da hermenêutica, afirma que é o estudo da compreensão, constituindo-se, essencialmente, na tarefa de compreender textos. A hermenêutica chega à dimensão mais autêntica quando deixa de ser um conjunto de artifícios e de técnicas de explicação de texto para compreender o problema hermenêutico dentro do horizonte de uma avaliação geral da própria compreensão interpretativa.
Assim, a hermenêutica tem como tarefa principal estabelecer parâmetros para a interpretação, fixando regras para a atividade interpretativo-concretizadora, a fim de que esta não seja realizada de acordo com a consciência de cada intérprete, permitindo o controle da atividade interpretativo-concretizadora, de forma a cobrar do intérprete o respeito a alguns princípios interpretativos fundamentais, bem como possibilitando o cumprimento das normas constitucionais e a sua atualização histórica. Há, pois, possibilidades e notadamente limites. A primeira premissa hermenêutica é a de que uma interpretação tipicamente constitucional é aquela especialmente voltada para a concretização dos direitos fundamentais. Ou seja, assumindo que as normas consagradoras de direitos fundamentais trazem uma maior carga de valoração, maiores dificuldades de racionalidade do processo hermenêutico e, principalmente, maior grau de liberdade do intérprete na conformação de seu sentido, não há como deixar de evidenciar que a sua interpretação-concretização apresenta-se – plano do ser – ou deve apresentar-se – plano do dever-ser – a partir de uma metodologia mais complexa e sofisticada em relação àquela comumente invocada para as demais normas jurídicas.
(*) A premissa é a de que, num país latino americano, como é o caso do Brasil, deve-se investigar, refletir, praticar e experimentar práticas metodológicas de concretização dos direitos fundamentais adequadas para a nossa realidade, sem ceder à tentação de importar modelos que pouco dizem para nós mesmos, para o nosso passado, presente e futuro. A contextualização histórico-cultural apresenta-se imprescindível para o desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional adequada à concretização dos direitos fundamentais. E, por fim, uma terceira premissa deve ser assinalada: a de que o século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, densificou, o tanto quanto foi possível, o paradigma da dignidade da pessoa humana. Diante dessa premissa, acreditamos que o sujeito – tomado em sua concretude – seja o responsável pela virada paradigmática experimentada com maior delineamento nesse início de século XXI.
(*) O desenvolvimento da temática dos direitos humanos e dos direitos fundamentais somado à preocupação das instâncias e organismos internacionais com os sujeitos de nossa história mundial ainda não têm sensibilizado suficientemente, a ponto de provocar substancial mudança paradigmática irreversível. Mas a proposta aqui é exatamente jogar luzes para a hermenêutica constitucional como pressuposto do exercício democrático do poder, a qual, por isso, vincula-se, 5 E aqui cabe esclarecer que a diferenciação, no plano hermenêutico, de regras de interpretação para os direitos fundamentais não constitui uma opção de valorização do objeto da investigação constitucional, pois a distinção proposta será levada a cabo em qualquer ramo do Direito onde seja necessário trabalhar com conteúdos jusfundamentais para a resolução do problema jurídico. Ou seja, não é qualquer norma constitucional, nem qualquer caso de inconstitucionalidade que gerará demanda por uma hermenêutica especificamente destinada, mas, sim, toda e qualquer situação jurídica em que direitos fundamentais estejam sendo concretizados. Irrestritamente, aos direitos fundamentais e à dignidade dos sujeitos titulares desses direitos. Nesse contexto, apresenta-se a hermenêutica constitucional como comprometida com o dirigismo concretizador dos direitos fundamentais, em todos os âmbitos de atuação dos seus agentes – sejam eles políticos, públicos ou quase-públicos –. Há, é bem verdade, consenso sobre a fidelidade à Constituição, mas não há uma razoável concordância sobre qual Constituição, objeto em si, a que se destina essa fidelidade. E talvez seja possível afirmar que a Constituição, fruto de consensos políticos datados e localizados geograficamente, seja mesmo, por essência, uma norma dinâmica.
(*) por integridade, entenda-se o respeito e consideração à linha histórica de pensamento e linhas téoricas de que se parte para a construção de razões discursivas. A preocupação com as ideias já publicadas, com as teses já defendidas, com as aulas já ministradas, são elementos vivificadores da experiência de integridade. A condução da argumentação pelas sendas da segurança jurídica, ainda que na linha da segurança jurídica dinâmica7, também indica clara predileção pelas práticas que materializam a integridade, nos termos do que aqui se propõe. Já a transparência é uma exigência mais tangível, no sentido da publicidade irrestrita dos atos jurisdicionais típicos. A regra geral da transparência também invoca a obrigação de expor, com nitidez, as razões de convencimento acerca das questões postas à análise, bem como o honesto compromisso com a lógica e racionalidade compreensível das razões de decidir. Em tempos de divergências constitucionais, a fidelidade constitucional parece perder sua força e vitalidade. Aparência inconsistente, pois o confronto hermenêutico de ideias e argumentos, na concretização constitucional, é indicativo de que há movimento e dinâmica a conduzir a Constituição pelo seu caminho de perenidade.
(*) as normas constitucionais, que expõem compromissos dos legisladores constituintes com a comunidade sócio-cultural que o legitimou, pretendem-se perenes e, por isso, importante a missão daqueles que declaram sua fidelidade constitucional a partir de projetos atualizadores do compromisso original. Não há possibilidade de falar-se em fidelidade constitucional sem levar em consideração as respostas que nascem, todos os dias, do exercício pleno e legítimo da jurisdição constitucional. Se a compreensão acerca da Constituição, como norma ápice do sistema jurídico nacional, não consegue consenso, impõe-se, ainda com mais vigor, declarar-se a fidelidade constitucional como um vetor hermenêutico do pluralismo, significando, nesse contexto, as múltiplas possibilidades de manifestação íntegra e transparente das compreensões constitucionais subjacentes.
(*) A divergência acerca dos modos de ver, sentir e concretizar a Constituição não pode ser considerada um elemento de debilidade, pois a integridade de um colegiado democrático e plural respeita e considera histórias forjadas por olhos, modos e saberes diferentes, sem jamais abrir mão da transparência como obrigação de dar-se a conhecer por todos os interlocutores interessados do presente e do futuro. Para que tal paradoxo não se transforme em tensões permanentes que podem debilitar a Constituição, tanto no plano simbólico, quanto no plano de sua real efetividade jurídica, é preciso canalizar os esforços para a construção de um discurso que, pela integridade e transparência institucionais, possa mediar as eventuais divergências hermenêuticas acerca da concretização constitucional realizada pelos órgãos jurisdicionais e legislativos. Se é certo que a democracia se fundamenta na liberdade, na igualdade e na responsabilidade, qualquer forma de coerção não parece adequada para a ressignificação da democracia entre nós. É certo, nesse contexto, que o constitucionalismo de 1988 inaugurou fase menos apática da democracia brasileira. Assim sendo, apresenta-se relevante e inexorável reconhecer a importância do sujeito na construção da história, bem como condicionar a sua formação à (in) formação que lhe é prévia.
(*) os detentores do poder político deverão estar atentos e preparados para os questionamentos e cobranças de uma sociedade informada, tendo em vista que as análises e prognósticos políticos serão cada vez mais condicionados por uma dinâmica comunicativa sem precedentes na história. O sujeito desse século XXI não pode mais ser apenas o sujeito do século XIX, que buscava a sua liberdade perante os desmandos do absolutismo recém derrubado, nem pode ser o sujeito do início do século XX, que ainda arrostado pela revolução industrial, lutava pela igualdade mirando a boa condição de vida liberal
(*) A partir dessa compreensão, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade responsáveis foram – e continuam sendo – a base daquilo que se experimentou como modelo de Estado Constitucional dos séculos XIX e XX, o qual está a exigir, para o século XXI, a construção de uma cultura histórica cujo objetivo comum seja a concretização do ideal de dignidade.
(*) é sintomática a recorrência ao princípio da dignidade humana como baliza para as considerações acerca da metodologia para a solução de casos difíceis, principalmente quando envolvem questões em que se faz necessária a concretização dos direitos fundamentais. Por isso, faz-se imprescindível um estudo mais profundo sobre este princípio, levando-se em consideração a sua aplicação nos diversos contextos culturais. Dessa forma, genuína faz-se a preocupação com a (in) formação de sujeitos constitucionais capazes de perceber, nas suas relações intersubjetivas, as premissas précompreensivas individuais, coletivas e difusas dos direitos fundamentais, para que elas sejam conscientemente colocadas no bojo da discussão dialética de teses e antíteses, em busca de sínteses que possam representar, ainda que momentaneamente, a précompreensão coletiva do grupo a que pertence, cultural ou institucionalmente considerado. Assim, ao voltar os olhos para a realidade brasileira, é preciso investigar, conhecer e ocupar-se das necessidades e das possibilidades, para que a hermenêutica constitucional não se converta em fórmulas artificiais de retórica jurídica, e, sim, constitua-se em método comprometido em dar concretude às possibilidades de participação ativa no processo de concretização das normas constitucionais, nomeadamente aquelas dos direitos fundamentais. Deixemos nítidos, portanto, os nossos pressupostos do Estado Constitucional e Democrático, inspiração da hermenêutica constitucional concretista aqui apresentada: os diálogos constitucionais, a concretização cooperativa dos direitos fundamentais e a inexorável interdependência entre as funções de poder, diante do objetivo maior de concretização da Constituição. São esses os pontos de partida que, em nossa mirada, devem conduzir os sujeitos constitucionais do Estado e da sociedade civil, sujeitos esses que devem ser cada vez mais conscientes e protagonistas da complexa tarefa de concretizar normas constitucionais e direitos fundamentais.
(*) precedentes no Supremo Tribunal Federal: adjudicações ignotas? Escolher é eleger critérios para diferenciar, priorizar ou preferir. Os precedentes que serão aqui apresentados formam um conjunto de decisões as quais foram escolhidas como excerto do conjunto de decisões do Supremo Tribunal Federal, julgadas entre 2016 e 2019. A preferência por estas, e não por outras decisões constitucionais, decorreu da temática nelas aventada, qual seja, a concretização de direitos fundamentais. Direitos fundamentais de todas as dimensões, cuja jurisdicionalização promoveu a formação de um notório acervo de casos conformadores do âmbito de proteção de tais direitos, e, consequentemente, da própria Constituição da República, no ordenamento jurídico brasileiro. Serão apresentados os principais argumentos eleitos pelo primeiro autor como os mais adequados para a compreensão hermenêutica das questões constitucionais trazidas à Corte Suprema brasileira, nos referidos precedentes.
(*) serão quinze decisões, todas elas debatendo direitos fundamentais, a demonstrar que a Emenda Constitucional n. 45/2004 propiciou muito mais do que reforma pontual e procedimental no Poder Judiciário, em geral, e no Supremo Tribunal Federal, em particular: verdadeiramente promoveu possibilidades hermenêuticas mais amplas, no que diz à missão institucional da Corte Suprema brasileira, como jurisdição comprometida com a efetividade e concretização dos direitos fundamentais. Tais questões não têm recebido a luz do paradeiro midiático cotidiano. No entanto, nelas está o cerne do destinatário de fundamentalidade dos direitos humanos fundamentais.
(*) essa reflexão sobre elenco exposto de precedentes, mostra de apreensão concreta das premissas hermenêuticas que navegam nos limites e nas possibilidades da Constituição da República. Não se desconhecem os freios que o tempo presente impõe aos voos da esperança na realização compromissória da Constituição; nada obstante, impende ver além do olhar seletivo do discurso epidérmico. Aqui se explicitam, nos votos, uma atividade; seu núcleo não falta ao entendimento constitucional entre práxis e filosofia. Signos e sinais da hermenêutica constitucional se abrem, nessas palavras, como pontes que se propõem unir margens entre a vida social e a resposta normativa. Presta contas por meio de ações e, por isso, dialoga com buscas críticas do pensamento reflexivo. Essa empiria se volta em desfavor da consciência deformada da prestação jurisdicional.
(*) A Constituição continua sendo evento histórico fundante e constitutivo. Não, é, porém, apenas objeto de consumo ou palco de espetáculo. Quem reduz as ideias e as coisas ao mero conceito de imagem se satisfaz com o espetáculo, com a representação, com aquilo que já denunciava, décadas faz, Debord: “(…) o espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono.” Por isso mesmo, os quinze votos e essa singela reflexão a quatro mãos tornam o ‘ser’ e não o ‘parecer’ como alfa e ômega deste texto especialmente composto para saudar quinze anos da Emenda Constitucional n. 45/2004. Na abundância da informação, esparsa ou seletiva, o tempo do espetáculo provoca discursos e imagens com riqueza ilusória de análise constitucional, ‘condottiere’ do valor que tem, no consumo midiático, da aparência sobre a essência. Aqui fica um singelo contributo para açular olhares e, não, para mitigar contradições na prestação jurisdicional de índole constitucional. Direitos fundamentais e interpretação concretizadora dessa essência à luz da Constituição merecem o devido espaço no quebra-cabeça que se tornou o Brasil constitucional destes últimos anos.
Fonte: Blog Edgar Lisboa – Por Por Ivanir José Bortot – Foto: Reprodução