Podemos nós lecionar algo às monarquias constitucionais?

Por Percival Puggina (*)

Durante a cerimônia de coroação do rei Charles III pude observar em alguns relatos da imprensa brasileira comentários em tom depreciativo. Os narradores falavam como se contemplassem uma velharia reproduzida na época errada ou, melhor dito, uma erupção do passado no tempo presente. Um vistoso anacronismo.

A pergunta que imediatamente me vinha à mente diante dessas manifestações era a seguinte: que diabos, senhores, temos nós a ensinar aos britânicos sobre política e instituições de Estado? Que conselho lhes podemos dar nós, com nosso presidencialismo e nossas permanentes crises institucionais? Que temos de bom a lhes oferecer com Lula a nos constranger perante o mundo, com nosso governo das togas iradas e nosso Congresso onde se vendem maiorias no martelo, por lotes, como gado em leilão?

Perdemos a oportunidade de aprender algo quando a tradição desfilou diante de nossos olhos com o saber dos séculos. Na aparente fatuidade luxuosa daquele protocolo conta-se a preciosa história do povo suprimindo, gradualmente, o poder das mãos dos reis.

Tudo começou lá atrás, no século XI com os reis saxões e a gradual evolução da ordem política medieval para a institucionalização da representação parlamentar. No início do século XIII, quando João Sem Terra assinou a Magna Carta Libertatum, já estava na pauta o problema da governança. No final do século XIII estava consolidada a House of Lords à qual Henry II fez acrescentar uma representação das comunidades: dois cavaleiros para cada condado e dois burgueses das cidades mais importantes. Posteriormente, no início do século XIV esse parlamento se reparte, formando as duas casas que ainda hoje existem. Sua função original era deliberar sobre os tributos que todos deveriam pagar.

Em 1640, Charles I tenta impor o absolutismo monárquico vigente, então, na maior parte dos estados nacionais que se foram constituindo enquanto o feudalismo se extinguia. Isso provocou uma rebelião, comandada por Cromwell. Charles I foi preso e decapitado dando origem ao preciso ensinamento antiabsolutista: “Rei que governa perde a cabeça”, reiterado em Luiz XVI na Revolução Francesa. Avulsa a coroa, Cromwell instaurou uma ditadura republicana que morreu com ele. Em 1660, retorna a Casa dos Stuarts com Charles II.

A função legislativa só se consolida com a Revolução Gloriosa, em 1688. James II, filho de Charles II, não era protestante, mas católico e de tendência absolutista. Quando teve um filho, sinalizando para uma sucessão católica, começou a revolução que levou à deposição do rei com sua substituição por William de Orange que era casado com Mary, filha de James II, ambos protestantes). Com William e Mary nasce a Bill of Rights e o poder de legislar sai definitivamente das mãos do rei.

Já havia, então, dois poderes: o parlamento legisla e o rei com a corte e a chancelaria faz o resto. Avanços semelhantes vão ocorrendo no sentido de retirar das mãos do rei a função judiciária confiada a funcionários do Estado. Em fins do século XVIII se consolida o governo pela maioria parlamentar. Surgia, ali, a primeira monarquia constitucional, ou parlamentar.

Essa fórmula se reproduziu pelos reinos europeus ao longo do século XIX, suscitando revoluções. Entre elas, a Revolução do Porto, que acabou sendo a principal causa da nossa Independência. Aqui, após a Assembleia Constituinte do Império, que quis instituir uma monarquia parlamentar, D Pedro I outorgou uma constituição de viés absolutista que acabou por levá-lo à abdicação em 1831. Após a transição até a maioridade de D. Pedro II (1840), a governança do Brasil seguiu a tradição das monarquias constitucionais da época, num período de estabilidade política extinto com a proclamação da República.  

Infelizmente, não aprendemos da História, ou damos credibilidade a releituras empreendidas com o pior viés ideológico possível. Por isso, os atos de coroação e as monarquias constitucionais com seus vistosos protocolos, parecem velharias extemporâneas.

Os fatos, porém, ensinam diferente. O The Economist Democracy Index pesquisa, anualmente, a situação da democracia no mundo, analisando a situação em 167 países. Na lista de 2022, entre os 20 estados nacionais plenamente democráticos (full democracy), 10 são monarquias parlamentares. A saber, pela ordem: Noruega, Nova Zelândia, Suécia, Dinamarca, Holanda, Canadá, Luxemburgo, Austrália, Japão, Reino Unido. Outros seis são repúblicas parlamentares. E apenas três são repúblicas presidencialistas. O Brasil ocupa o 51º lugar, contado como democracia falha (flawed democracy).

Mesmo assim, governo e Tribunais Superiores esbanjam autoestima; o parlamento, salvo as minoritárias exceções, é como se sabe. E os três acham que a culpa de as coisas não irem bem é sua, leitor. Enquanto o rito de coroação de Charles III nos remete à longa história dos povos para domar o Estado, aqui no Brasil regredimos tanto que, agora, o Estado se empenha em domar a sociedade.

(*) Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

*Artigo de responsabilidade do autor.

Fonte: Site puggina.org, gentilmente disponibilizou este artigo para o Brasília In Foco News

Foto: Reprodução/Internet

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