Problemas dos 72 mil habitantes de Vicente Pires vão além de cratera
População enfrenta falta de serviços essenciais na cidade que foi colônia agrícola, formada a partir de ocupações irregulares
Os moradores de Vicente Pires pagam, a cada dia, uma conta mais cara por causa das décadas de crescimento populacional descontrolado e sem planejamento. Durante 27 anos, a cidade, originada a partir do retalhamento e da ocupação irregular de chácaras destinadas à produção agrícola, se auto-organizou pela ação dos próprios habitantes. Assim, transformou-se em um canteiro de obras que parece não ter fim, mergulhado em graves problemas de infraestrutura e falta de saneamento básico.
Os sucessivos governos do Distrito Federal taparam os olhos para a urbanização desenfreada da antiga colônia agrícola. Hoje, as consequências saltam à vista da população. A cidade carece de melhorias em serviços essenciais, como saneamento e mobilidade, exemplificado na cratera que engoliu um veículo e pôs em risco a vida de um casal de idosos na última terça-feira (23/10).
Nesta reportagem da série DF na Real, o Metrópoles mostra a situação de Vicente Pires, cidade de 72,8 mil habitantes – conforme a última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad 2015/2016). Ao fim do texto, os candidatos ao GDF apresentam propostas para a resolução das adversidades abordadas.
O problema mais antigo da cidade, as construções irregulares à revelia do Estado, é também o mais evidente, além da pavimentação defeituosa. Não há tempo ruim: nem mesmo as fortes chuvas dos últimos dias frearam as obras, que seguem a todo vapor.
“A Agefis [Agência de Fiscalização do DF] autua os donos das construções, mas isso não tem efeito. Eles recorrem à Justiça, conseguem liminares e fazem prédios de cinco, seis ou até sete andares”, explica o presidente da Associação de Moradores de Vicente Pires (Amovipe), Gilberto Camargos.
Ele diz que, no fim de 2017, logo após a morte do engenheiro Agmar Silva, 55 anos, por causa do desabamento de um prédio na Colônia Agrícola Samambaia, a Agefis intensificou demolições de obras. Porém, em 2018, os donos das edificações voltaram a ter “caminho livre”, segundo Camargos.
O administrador da cidade, Charles Guerreiro, diz que as autuações da agência não têm bastado para barrar as construções irregulares. “As pessoas insistem, mesmo sendo notificadas e tendo materiais apreendidos. Encontraram em Vicente Pires forma de ganhar dinheiro. Mas, uma hora terão de pagar. A conta vai chegar para elas”, afirma.
Histórico
Os problemas enfrentados hoje pelos moradores de Vicente Pires têm origem na década de 1980, segundo o doutor em estruturas ambientais urbana Luiz Alberto Gouvêa. Como parte da política rural do DF, a área onde está a cidade tornou-se colônia agrícola. Entretanto, as chácaras ocupavam local inapropriado para a atividade, segundo o pesquisador.
“A área ficava entre vias que ligam importantes cidades do DF, Taguatinga e Plano Piloto. Portanto, tem vocação para ser urbana e de baixa densidade. Não agrícola. Mas, os chacareiros perceberam que era mais valioso o terreno urbano que o rural. Então, fizeram parcelamento desordenado. Os governos deixaram, pois isso representava mais votos” Luiz Alberto Gouvêa, doutor em estruturas ambientais urbanas
Em 1991, os primeiros loteamentos foram realizados. Desde aquele ano, os compradores sempre souberam que a área era irregular. Ainda assim, transformaram chácaras em residências sobre zonas de declive e nascentes dos córregos Vicente Pires e Samambaia. Como consequência, houve assoreamento dos riachos. Ou seja, diminuição de volume.
Joicemara dos Santos, 36, vive há mais de duas décadas em um barraco à beira de uma das nascentes do córrego Vicente Pires, em uma zona da Vila São José conhecida como Buraco da Gia. Nesse período, ela acompanhou a míngua da fonte.
“Criou-se erosão e a água vem poluída. Se não fosse isso, poderíamos bebê-la. Já fui mordida por rato, não temos onde jogar lixo nem rede de esgoto. Sabemos que não estamos aqui de forma regular, mas não temos para onde ir. Vivemos neste lugar porque precisamos”, reclama a mulher que, desempregada, mora com o marido e dois filhos adolescentes.
A 30 metros da casa dela, a diarista Francisca Valentino, 44, vive com sete filhos, também esquecida pelo poder público. O barraco que abriga a família está sob constante ameaça, pois fica abaixo de árvore cujos galhos frequentemente caem em cima do telhado. “Todo ano, no período chuvoso, troco as telhas. Tenho medo de que aconteça algo sério com meus filhos. Se pudesse, moraria em outro lugar, mas não tenho condição”, lamenta.
À medida que a ocupação irregular avança, os espaços destinados para a construção de escolas, creches e unidades básicas de saúde (UBSs) encolhem. Maria de Fátima, 50, vive desde 1997 em Vicente Pires. Quando necessita de atendimento, recorre ao Hospital Regional de Taguatinga. “Há somente uma UBS em Vicente Pires e atende só moradores de algumas ruas. Muitas famílias também precisam de creches”, queixa-se.
A área ocupada por essas famílias é da União. De acordo com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 1.956 hectares dos 2.574ha de Vicente Pires pertencem ao governo federal. Isso representa 75% de toda a região administrativa. O restante é de propriedade do GDF. Do território da União, 80% está ocupado irregularmente.
Regularização
Em abril, o GDF e a União assinaram acordo para regularização dos terrenos de Vicente Pires que pertencem ao governo federal. Assim, o processo de legalização das glebas 2 e 4 é conduzido pelo Executivo local. A cidade é dividida em quatro trechos: o 1 e o 3 pertencem à Agência de Desenvolvimento do DF (Terracap). O Trecho 1, com registro impugnado na Justiça, compreende a região do Jóquei. O Trecho 3 fica na área da Colônia Agrícola Samambaia.
Em 2017 e neste ano, a empresa lançou o edital de convocação para os moradores dessas áreas comprarem os lotes, avaliados de R$ 33,5 mil a R$ 135 mil. A adesão foi de 84%. Algumas escrituras, inclusive, já foram entregues.
Segundo a legislação, quem ocupa o imóvel pode adquirir a propriedade. A Terracap faz a avaliação do terreno. O preço final é calculado com base nessa apuração, descontados os investimentos em infraestrutura feitos pelos moradores e a consequente valorização que as benfeitorias garantiram aos imóveis.
Os interessados podem optar pelo pagamento à vista, que dá direito a 25% de desconto – desde que tenham cadastro na Terracap – ou parcelar o valor em até 240 meses diretamente com a agência ou com qualquer instituição financeira.
“Nossa reivindicação dura 20 anos. Para quem está prestes a ter o imóvel regularizado, a escritura representa segurança jurídica. Vivemos com medo de derrubadas”, analisa a professora Simone França, 46, moradora da Rua 6.
A Associação Comunitária de Vicente Pires (Arvips) enviou à Terracap plano de uso e ocupação do solo desses trechos 2 e 4. Cabe ao GDF encaminhar o documento ao Conselho de Planejamento Territorial (Conplan), responsável pela análise e aprovação.
Segundo o presidente da Arvips, Dirsomar Chaves, o projeto segue diretrizes urbanísticas estabelecidas pela Secretaria de Gestão do Território e Habitação (Segeth). “O plano define tipos e tamanhos das ocupações permitidas e estabelece as áreas para instalação de equipamentos públicos [praças, hospitais e unidades básicas de saúde, escolas, creches e espaços comunitários]. Tudo sob metodologia da Terracap”, explica.
Obras
As obras de infraestrutura, como pavimentação, calçadas, meios-fios e drenagem em Vicente Pires, estão em andamento e vão custar R$ 463 milhões, financiadas em maior parte com recursos federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). As ações, executadas por nove empresas, devem terminar em dezembro. As licenças ambientais já foram emitidas.
Os trabalhos nesta época chuvosa causam ainda mais transtornos aos moradores. “Há coisas que devem ser feitas e o governo atual tem preocupação com Vicente Pires. Mas a população sofre. Essas obras devem ocorrer no tempo de seca, temos seis meses. Em época de chuva, alaga tudo e não dá para fazer. Parte do material, como asfalto, se perde”, critica Dirsomar Chaves.
Um dos problemas acentuados neste período são os alagamentos. “À medida que há prédio e asfalto, sobra menos espaço para a água ser absorvida. É preciso investir em drenagem, tanto superficial quanto profunda, além de um estudo completo sobre a quantidade de água que está sendo retirada das casas”, sugere a professora de engenharia civil do UniCeub Sandra Patricia Echeverria Fernández.
Essas obras, ainda que tardias, devem solucionar não somente os alagamentos, mas amenizar problemas de mobilidade. Ônibus que não entram nas ruas hoje em manutenção poderão percorrer essas áreas ao fim das mudanças.
Assim, pessoas como a estudante Ana Luíza Araújo, 18 anos, terão mais facilidade com os meios de transporte local. Ela mora na Rua 6 e precisa andar cerca de 2km para pegar ônibus. “O trânsito aqui, de modo geral, precisa de mudanças urgentes. É necessário mais paradas de ônibus, ciclovias, faixas de pedestres e quebra-molas”, avalia.
No trajeto percorrido pela jovem, ela passa por calçadas deterioradas e sem acessibilidade para quem tem deficiência ou dificuldade de locomoção.
Parte do calçamento fica entre as pistas e os estacionamentos em frente aos estabelecimentos comerciais. O vaivém de carros nas vagas põe em risco pedestres que caminham por ali.
O outro lado
O administrador de Vicente Pires afirma que as pessoas que vão morar na região sabem da realidade da cidade. “As pessoas não compraram lotes em Paris ou no centro de Brasília, mas em uma cidade que não teve, desde seu nascimento como área urbana, infraestrutura”, diz Charles Guerreiro.
“O que fazemos é mudar a história para que pessoas tenham qualidade de vida e transformar Vicente Pires em uma das melhores cidades do DF. Temos um forte comércio local e uma população apaixonada”, finaliza.
O GDF afirma que Vicente Pires nasceu, há cerca de 20 anos, a partir do parcelamento ilegal e irregular de terras que estavam destinadas a chácaras e a áreas de preservação ambiental. “Até 2014, várias estruturas privadas foram erguidas sem autorização ou controle do poder público”, acrescentou.
“Por conta de dispositivos legais que regem a conduta do Estado e o ordenamento urbano, a construção de equipamentos públicos, tais como escolas, delegacias e hospitais, só pode ser iniciada depois da regularização fundiária. A regularização de Vicente Pires, que é o anseio mais urgente da comunidade, foi iniciada nesta gestão”, ressalta. O GDF salientou também que, nesta administração, inaugurou uma escola de ensino infantil e uma UBS.
A Agefis informa que desobstruiu 36,9 hectares de construções irregulares de 2015 a 2018 e aplicou, nos últimos 15 meses, 2,4 mil autos de infração. A agência explica que, para obras em andamento, é realizado um relatório pré-operacional e enviado a Superintendências de Operações para ação de pronta resposta. Se for uma obra de grande porte, é realizado um auto de embargo e intimação demolitória, dando prazo para o responsável demolir por conta própria.
Mas, se não houver cumprimento da intimação ou desobediência ao embargo, são aplicadas multas diárias (iniciais de R$ 50 mil), que podem ser dobradas diariamente. A Agefis, então, acrescenta a situação no seu cronograma de operações e executa a ação de acordo com as prioridades.
Veja as propostas dos buritizáveis sobre Vicente Pires:
Fonte: Metrópoles
Por Douglas Carvalho
Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles