Ratos e comida estragada. A realidade do sistema socioeducativo do DF
Relatório produzido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente retrata os problemas das sete unidades de internação da capital
Ratos e cobras nos corredores, refletores quebrados, água da chuva invadindo as instalações e trancas danificadas. A precária estrutura dos espaços destinados à internação de menores infratores do Distrito Federal é escancarada em relatório produzido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA/DF) e em denúncias as quais o Metrópoles teve acesso.
Em vídeos e fotos – que podem ser vistos abaixo – é possível notar o descompromisso das autoridades com a estrutura do sistema socioeducativo. No documento de 62 páginas, finalizado em 2017, o descaso é apontado minuciosamente. Ele aborda problemas das sete unidades do DF: Santa Maria, Recanto das Emas, Planaltina, São Sebastião, provisória de São Sebastião, Brazlândia e de Internação de Saída Sistemática.
Segundo o texto, cada unidade atua e se organiza de forma própria e o desempenho delas varia. Em suma, há problemas com gestão e estrutura, saúde, educação e segurança em todos os locais visitados. Módulos lotados, falta de cama, colchão, roupa de cama e toalhas, alimentos estragados e em pouca quantidade, ausência de atendimento médico, suporte escolar insuficiente e até morte de internos são registrados.
De acordo com o CDCA, o governo tem ignorado os pedidos por melhorias. Até o presente momento, não foi apresentado o já requerido Plano de Ação para combater os imbróglios. No relatório, o Conselho também lamenta o fato de representantes da Subsecretaria do Sistema Socioeducativo não participarem das reuniões organizadas com o objetivo de discutir soluções.
“O abandono é total. A Secretaria da Criança prioriza outras atividades e deixa o sistema socioeducativo encostado. Não nos resta fazer mais nada. Organizamos passeata, carreata, paralisação e fechamos o Eixão, mas não obtivemos resposta. Essa falta de investimento pode custar vidas de agentes e internos”, reclama Walter Marques, presidente do Sindicato dos Servidores da Carreira Socioeducativa do Distrito Federal (Sindsse-DF).
Em março, um adolescente de 16 anos foi assassinado na Unidade de Internação Provisória de São Sebastião (UIPSS). O crime teria sido cometido por um colega de quarto de 14 anos. No mesmo mês, as câmeras de segurança da unidade do Recanto das Emas (Unire) registraram agressões de agentes a jovens infratores. O grupo que trocou chutes e socos com os profissionais havia participado, dias antes, de um motim na tentativa de fugir do local. Os riscos de rebeliões e outros transtornos foram listadospelo Metrópoles em outra oportunidade.
“O relatório mostra que há um grande problema estrutural de gestão do sistema socioeducativo. Ele incide na subtração do direito do menor adolescente e cria um ambiente institucional de péssima qualidade para o servidor público”, aponta Fábio Félix, conselheiro e membro da comissão de medidas socioeducativas do CDCA/DF.
A reportagem procurou a Secretaria de Estado de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude a fim de obter respostas às denúncias, mas até a última atualização deste texto não houve retorno da pasta.
Relatos do abandono
Para produzir o documento, a Comissão de Medidas Socioeducativas do CDCA/DF visitou as sete unidades e ouviu 20 internos. Eles transmitiram suas percepções sobre o sistema socioeducativo da capital. Os entrevistados reclamaram das pequenas porções de comida, além de frequentemente servirem carnes cruas. Conforme conta um dos adolescentes, quando eles ficam doentes, são esnobados pelos agentes: “Dorme que passa”.
“Um ano e sete meses sem toalha, enxugando com a camiseta. Não peço ou falo nada. Tenho medo”, fala de um menor registrada no relatório.
Em poucas palavras, um jovem de 18 anos internado na unidade do Recanto das Emas descreve como é a vida no local. “Quatro rolos de papel no mês, opressão, gritos, banho de sol reduzido, cinco pessoas por barraco, sem privacidade, comida ruim e pouca”. Um outro vai além e decreta a falência do sistema na tentativa de recuperá-los. “O sistema só alimenta o ódio e a maldade, não regenera ninguém”, desabafa.
O estudante de Sociologia Emerson Franco, 28 anos, viveu na pele os problemas apontados. Entre detenções como menor e a maior de idade, foram oito anos no sistema carcerário do DF. Ele, que entrou para a criminalidade aos 12 anos, comemora estar livre, nas ruas, e procura passar uma mensagem de conforto e ensinamentos em palestras.
“Na minha época, não existiam tantas unidades. O Caje, por onde passei, chegou a ser chamado de mini Carandiru, era como um presídio de segurança máxima para menores. A situação era um inferno. Não dá para dizer que está bom. Considero menos pior hoje”, compara.
Conforme pontua Emerson, várias famílias têm resistência em compartilhar informações. Ele, que conversa com internos, parentes e demais envolvidos em palestras, faz questão de dar publicidade à sua experiência. “Algumas mães trazem queixas, mas muitas temem por retaliação”, acrescenta.
Principais problemas encontrados na Unidade de Santa Maria (Uism)
Gestão e Estrutura: com capacidade para abrigar 90 adolescentes, a unidade extrapola esse limite em 66 pessoas, totalizando 156 internos. Faltam roupas de cama e toalhas e, embora esteja estrangulada pelo número de adolescentes, há camas para todos.
Alimentação: há constantes reclamações sobre a quantidade e qualidade da alimentação e pouca variedade do cardápio. Não há nutricionista e o controle de qualidade é feito pela própria gerência.
Educação: os adolescentes estão frequentado a escola apenas duas ou três vezes por semana.
Saúde: não há enfermaria na unidade. Em caso de emergência, os jovens são levados para a rede pública de saúde. Não há atendimento ginecológico nem odontológico. Faltam medicamentos em ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis.
Segurança: houve três mortes no último semestre. Há relatos de agressões verbais sofridas pelos adolescentes que não teriam sido apuradas.
Principais problemas encontrados na Unidade de Recanto das Emas (Unire)
Gestão e Estrutura: a unidade tem capacidade para atender 180 adolescentes e recebe 251, sendo 71 acima da capacidade. Não há cama para todos e faltam toalhas e roupa de cama. Material de higiene e limpeza não é suficiente e há cerca de 10 adolescentes por agente socioeducativo em cada plantão.
Alimentação: reclamam da variedade, quantidade e qualidade. Falta nutricionista e quem tem restrição alimentar não é atendido conforme as indicações.
Educação: adolescentes vão para aula duas ou três vezes na semana. O local possui espaço físico, mas não oferece curso e oficinas profissionalizantes.
Saúde: sem grandes reclamações.
Segurança: registro de lesão corporal contra um adolescente e tentativa de fuga. Há informação de maus-tratos e xingamentos
Principais problemas encontrados na Unidade de Planaltina (UIP)
Gestão e Estrutura: a unidade tem capacidade para abrigar 86 adolescentes, no entanto, conta com 95, ultrapassando em nove o número.
Alimentação: a reclamação é referente à quantidade servida, pois consideram pouca comida.
Educação: frequentam a aula por meio de rodízio e apenas duas ou três vezes por semana. Não possui oficinas profissionalizantes para os adolescentes.
Saúde: Não há consultório odontológico nem dentista, sendo o adolescente encaminhado para a rede pública em caso de necessidade. Não há salas para isolamento em casos de doenças infectocontagiosas. Foi detectado um adolescente com caxumba e três com DSTS.
Segurança: o último registro de motim é do ano de 2016. O único caso de morte foi em 2015 e a unidade trabalha com prevenção a violência
Principais problemas encontrados na Unidade de São Sebastião (Uniss)
Gestão e Estrutura: a casa abriga 137 adolescentes, sete a mais do que a sua capacidade de atendimento
Alimentação: há relatos de comida e lanches estragados, pelo controle precário de qualidade. A quantidade servida, segundo os adolescentes, é pouca.
Educação: adolescentes estão frequentando a escola apenas duas ou três vezes por semana. Não há espaço para atividades profissionalizantes.
Saúde: há consultório odontológico, mas com equipamentos defasados, sendo os internos encaminhados para o centro de saúde da cidade. Na unidade não há sala para isolamento em caso de doenças infectocontagiosas.
Segurança: foi registrada uma morte em 2016 e uma tentativa de homicídio no mesmo ano.
Principais problemas encontrados na Unidade de Brazlândia (Uibra)
Gestão e Estrutura: sem grandes reclamações
Alimentação: sem grandes reclamações
Educação: internos frequentam aula apenas duas ou três vezes por semana
Saúde: não há médico na unidade, apenas uma enfermeira e dois técnicos em enfermagem.
Segurança: foram registrados três casos de evasão nos últimos seis meses e oito lesões corporais a adolescentes.
Principais problemas encontrados na Unidade Provisória de São Sebastião (Uipss)
Gestão e Estrutura: o espaço pode abrigar 135 internos, mas são 180 no total. Há colchões para todos, mas faltam camas.
Alimentação: sem grandes reclamações.
Educação: não há local de isolamento para doenças infectocontagiosas. À época do relatório, 14 casos de caxumba foram registrados
Saúde: um adolescente com doença infectocontagiosa e outro com DST. Há relatos de maus-tratos aos adolescentes por parte dos colegas e dos agentes socioeducativos
Segurança: informações ficaram prejudicadas pela saída do conselheiro que atuava na unidade
Principais problemas encontrados na Unidade de Saída Sistemática (Uniss)
Gestão e Estrutura: sem grandes reclamações
Alimentação: os internos reclamam da quantidade e qualidade da comida. Não há nutricionista no local
Educação: internos frequentam aula de duas a três vezes por semana e não há material pedagógico suficiente. Espaços destinados às atividades esportivas são precários.
Saúde: espaço de assistência à saúde é improvisado. Não há médico na unidade, apenas enfermeiro e um auxiliar.
Segurança: houve apreensão de drogas no último semestre, a partir da produção do relatório
Fonte: Metrópoles
Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles