Relegada pelo público enquanto viva, Hilda Hilst é homenageada na Flip
Festival literário ocorre entre 25 e 29 de julho
Diziam que ela era uma velha bem sacana. Que era doida e obscena. Que sua obra era difícil de doer, comparável a uma tábua etrusca. Que, em seu isolamento numa chácara, podia passar horas a falar com os mortos.
O folclore em torno de Hilda Hilst (1930-2004) era conhecido -mas leitor para seus livros, que é bom, nada. A autora passou a vida desejando ser lida, mas não viveu para ver o momento chegar.
Agora chegou. Ela nunca foi tão famosa -e não é modo de falar, porque há indicadores concretos da fama crescente.
A Flip deste ano, que ocorre de 25 a 29 de julho e tem a autora paulista como homenageada, é parte do processo, claro. Mas o reconhecimento antecede a festa literária.
É o que mostra um levantamento inédito acerca das menções à escritora em pesquisas acadêmicas, livros, capítulos de livros, jornais e revistas de 1949 a 2018.
Compilado no livro “Fortuna Crítica de Hilda Hilst” (IEL/Unicamp), disponível na internet, o levantamento de Cristiano Diniz mostra que foram produzidos sobre ela 209 capítulos e livros; 782 artigos em periódicos, jornais e revistas; 88 entrevistas e 184 trabalhos acadêmicos.
Numa análise da linha do tempo, vê-se que o reconhecimento é recente. Até 2001, as referências acadêmicas eram no máximo uma ou duas por ano -e nula em vários anos.
Na imprensa, os artigos sobre a autora surgiam em maior quantidade, o que sugere que ela era mais conhecida como personagem do que de fato lida, sobretudo nos anos 1980 e 1990. Mesmo assim, a fama midiática era episódica.
Entre 1990 e 1991, quando ela lança a trilogia erótica que começa com “O Caderno Rosa de Lory Lamby”, os artigos saltam para 40, mas ela logo passa a ser ignorada de novo.
A partir de 2002 o cenário começa a mudar e, depois de 2008, passa a ser produzida uma média de 13,2 teses sobre a escritora. De 2004 em diante, os artigos sobre ela em jornais e revistas nunca ficam abaixo de 17 ao ano, chegando ao pico de 62 em 2010.
Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp e amigo de Hilda, lista hipóteses para a virada.
A primeira é que, em 2002, a escritora começa a ter toda a sua obra editada pela primeira vez por uma grande casa, a Globo Livros, e a ter distribuição nacional -a curadoria foi feita pelo próprio Pécora.
O outro motivo foi a morte de Hilda, em 2004. Com isso, a pesquisa da obra ficou livre de uma figura que não eram bem vista por alguns setores da crítica literária.
“Sei que é uma visão um pouco dura das coisas, mas acredito nisso. Ela era bastante incômoda na universidade. A morte tirou a obra do lado mais escandaloso e indigesto”, diz Pécora.
Nos anos 2000, acrescenta ele, os paradigmas do modernismo paulista começam a ser questionados –com seus critérios de valor nacional, vocabulário informal, perspectiva laica e temas sociais.
“Ela não tinha nada a ver com isso, o que ela escrevia era radicalmente individual. Por esse olhar, a Hilda não passaria no vestibular de nenhuma universidade brasileira”, ri Pécora.
Nos anos 2000, de forma tardia, se disseminam os estudos culturais na universidade brasileira, ramo interdisciplinar das humanidades que traz consigo, por exemplo, os estudos de gênero –isso traz o interesse na literatura de mulheres, e Hilda passa a ser lida sob essa chave.
“Não são [análises feitas] a partir da estruturação da própria obra. Ela está servindo de combustível para um paradigma de interpretação. Antes era o modernista, agora tem o [paradigma] feminino, que se torna inclusivo não numa análise literária pertinente, mas no alinhamento de uma autora”, afirma Pécora, que encara o momento sem euforia.
Começando neste mês e até a Flip, a obra completa da autora estará toda disponível nas livrarias –em projetos de diversa editoras, o que dá ideia do sucesso que ela se tornou.
A Companhia das Letras, que tem a parte principal da obra da autora, lança, nesta semana, um box com a prosa completa em dois volumes, acompanhado de aparato crítico. O volume com toda a poesia da autora já está nas livrarias desde o ano passado.
A Nova Fronteira, por sua vez, lança uma edição com as crônicas de Hilda, enquanto a L&PM começa a lançar o teatro da escritora.
Os múltiplos projetos são fruto de um momento em que a obra da autora de “Fluxo-Floema” passou a ter uma gestão mais alinhada às práticas do mercado hoje.
Daniel Fuentes, herdeiro da autora que cuidava da obra dela sozinho, passou a ser representado pela agente literária Marianna Teixeira Soares –ao fim do contrato com a Globo Livros, os dois levaram o grosso de Hilda pra a Companhia das Letras e apresentaram projetos a outras editoras.
Fuentes cuida com sua mãe, Olga Bilenky, do Instituto Hilda Hilst -na Casa do Sol, sítio onde a autora morava em Campinas-, dedicado à divulgação da obra dela. A instituição vive basicamente de direitos autorais, embora já tenha obtido patrocínios.
O interesse de tantas editoras hoje seria impensável até os anos 1990. “Fizemos um trabalho de formiguinha no instituto para divulgar Hilda. Mas o teatro é central nesse boom dela. Todo mês, dou autorização para duas peças [inspiradas na obra dela]”, diz Fuentes.
A última evidência material de que Hilda está em seu auge começou a aparecer nas ruas de São Paulo há dois meses: um pichação em muros, viadutos e faixas de pedestres com a hashtag “#leiahilda”, feita por um grupo de artistas que se reúne às quintas para estudar poesia.
Quinze anos após sua morte, aqui estão as provas que ela tanto buscou: mortos podem mesmo falar com os vivos.
Com informações da Folhapress.
Fonte: Notícias Ao Minuto
Foto: Instituto Hilda Hilst