Servidores públicos superendividados vão à Justiça contra bancos no DF
Trabalhadores chegam a ter 100% dos salários retidos para pagamento de dívidas. Em um caso, prejuízo de PM alcançou a cifra de R$ 3,5 bi
Sem receber um centavo sequer do seu salário por nove anos seguidos, um policial militar do Distrito Federal precisou recorrer à Justiça a fim de recuperar uma margem suficiente para o sustento. O PM, que pediu para não ser identificado, teve toda a remuneração, no período, retida para pagamentos de dívidas bancárias. Só no cheque especial, a cifra chegou a R$ 3,5 bilhões (veja demonstrativo abaixo).
O policial é mais um entre os milhares de servidores que têm boa parte da renda comprometida com empréstimos e financiamentos e precisam acionar o Judiciário para renegociar as dívidas. As medidas ocorrem principalmente pela falta de acordo dos trabalhadores com os credores.
O débito bilionário do policial foi extinto a partir de uma negociação extrajudicial com o Banco de Brasília (BRB) em 2017, segundo o advogado Emilison Alencar, que atuou no caso. A pretensão dele era pedir danos morais para o cliente, mas como o valor da causa — estimado em R$ 1 milhão — não seria suficiente para a quitação, resolveu abrir mão da indenização para fechar um acordo com o banco.
Segundo Alencar, o cliente entrou em depressão devido à situação. Atualmente, o PM recebe todo o salário. Apesar desse desfecho positivo, o advogado ressaltou que o acordo foi uma exceção. O escritório dele atua em 129 ações parecidas. “Só hoje pela manhã vieram três pessoas que ficaram totalmente sem salário”, revelou.
Conforme a legislação, os empréstimos consignados não devem ultrapassar 30% do salário do servidor. O limite pode chegar a 70% para pensão alimentícia, educação, aluguel ou aquisição de imóvel. No entanto, depois que a Súmula 603 do Superior Tribunal de Justiça — que proibia às instituições financeiras reterem o pagamento dos correntistas — foi cancelada, em 22 de agosto, deixou de haver um entendimento consolidado sobre a questão. “Há decisões judiciais diversas”, lamentou Emilison.
Facilidades
Sem conseguir acordo, uma servidora da Secretaria de Saúde do DF, de 45 anos, moradora do Cruzeiro, precisou recorrer à Justiça para liberar parte do salário, que chegou a ficar 80% comprometido. “Eu procurei o banco, mas a proposta era dobrar o valor devido”, disse. Assim como outros superendividados, ela pediu para não ser identificada pela reportagem.
Com formação técnica, a trabalhadora havia recorrido ao crédito, em 2015, para conseguir pagar a faculdade de enfermagem e acabou mergulhando em dívidas.
“Foi muito fácil. Você faz até no caixa eletrônico mesmo. Eu pagava um semestre da faculdade, renegociava o empréstimo e pagava o outro, porque eu não queria parar de estudar. Não dá para dizer que eu não fui lá, mas o banco foi permitindo. As dificuldades dentro de casa foram as piores possíveis. Continua difícil” Servidora pública
Depois da ação judicial, a mulher conseguiu limitação dos descontos feitos pelo BRB. Por sua vez, o Banco do Brasil desrespeitou a decisão e acabou penalizado com o pagamento de indenização de R$ 40 mil, segundo o advogado da servidora.
No vermelho
Um sargento da PM da reserva, de 54 anos, também passou pelas mesmas dificuldades. O militar aposentado mora, atualmente, no terreno do cunhado, no Park Way. Com salário de cerca de R$ 8 mil, ele chegou a ter a remuneração limitada a R$ 2 mil para pagar um débito bancário que ultrapassa R$ 100 mil. “Antes do consignado, eu estava tranquilo. Depois, minha vida desmoronou”, lamentou. Ele também recorreu à Justiça para recuperar parte do salário e hoje recebe 60% do total.
“Eu fazia bicos, por fora, para pagar as contas, mas os bancos estavam comendo quase todo o meu salário. Quando era para fazer acordo, estendiam mais ainda os pagamentos. Eles não estão interessado nos clientes, apenas neles” Sargento da PM da reserva
Dados da Serasa Experian apontam que, na região Centro-Oeste, 32,1% dos funcionários públicos estavam inadimplentes em dezembro de 2017. Já a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada pela Fecomércio-DF, em setembro de 2018, mostra que 78% das famílias do DF têm algum tipo de dívida, sendo o cartão de crédito o maior vilão. O crédito consignado também é listado como causador por 10% dos entrevistados.
Michael Melo/Metrópoles
Programa
Ao final de 2014, o Tribunal de Justiça do DF criou um programa para auxiliar a população. A juíza Caroline Lima, coordenadora do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e de Cidadania Superendividados (Cejusc Super), atribui a situação ao crédito concedido de forma irresponsável e à falta de reflexão por parte do consumidor. “A sensação de segurança que o servidor tem, muito em virtude da estabilidade, não favorece a cultura da poupança”, avaliou.
Nos últimos três anos, foram realizadas 1.352 audiências de conciliação, que resultaram em 464 acordos com credores. Isso significa que 45% das demandas foram resolvidas de forma consensual. Qualquer pessoa pode se inscrever no programa da Cejusc Super, gratuitamente. O Tribunal oferece, também, atendimento psicossocial e orientação.
“Suicídio”
O consultor Jonatas Bueno, membro da Associação Brasileira de Educadores Financeiros (Abefin), explicou que o principal motivo de endividamento é o consumo acima do salário recebido. O especialista se coloca totalmente contra os parcelamentos e até mesmo financiamentos de bens.
“O problema é que as pessoas são permissivas, não assumem que parcelas são dívidas, mas isso engessa muito o orçamento. Compromissos de mais de 30 anos, de parcelamentos ou empréstimos, são um ‘suicídio financeiro”, disse.
Rafaela Felicciano/Metrópoles
Para se chegar ao superendividamento, geralmente há um caminho de erros a ser percorrido. “É muito difícil isso acontecer da noite para o dia. Em geral, as pessoas têm dificuldade para administrar o dinheiro, por isso devem procurar um especialista”, orientou Bueno.
Em dezembro de 2017, Elied Barbosa criou a Caixa Assistencial Servidores do GDF para ajudar os colegas endividados. Ela também fundou um grupo de funcionários públicos locais que se dizem reféns dos bancos. De 6 mil participantes, segundo seus cálculos, 1,8 mil servidores estão com 70% a 100% do salário comprometido com as instituições financeiras.
Arte/Metrópoles
O outro lado
Procurado pelo Metrópoles, o BRB informou que o quadro melhorou no último ano, depois que a instituição começou a adotar medidas para evitar o superendividamento. O banco disse também que as taxas e prazos são aplicados de acordo com a capacidade de pagamento do cliente e que os créditos concedidos respeitam a capacidade de pagamento e os percentuais legais estabelecidos.
“Atento a esse movimento, o BRB vem desde 2015 disponibilizando linhas de créditos específicas para renegociação, oferecendo condições para alongamento de prazos, desestimulando linhas mais caras, buscando enquadramento dentro de um percentual de salário condizente”, disse a assessoria da instituição financeira, por nota.
Sobre o valor bilionário devido pelo PM que abre esta reportagem, o banco informou que “a atualização monetária não reflete o valor contábil da operação, sendo que em momento algum o cliente foi cobrado por esse valor de dívida”.
O Banco do Brasil respondeu que não comenta o assunto, por se tratar de uma questão estratégica. A Caixa Econômica Federal não se posicionou até a última atualização deste texto.
Fonte: Metrópoles
Por Manoela Albuquerque
Foto: Igo Estrela / Metrópoles